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O que é racionalidade?

Talvez seja só um nome pra uma coisa que não entendemos bem

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Edgard Pimentel

Há pouco tempo, caminhava pelos lados de Lorvão, que fica em Penacova, vila de Portugal, comia um doce típico chamado nevada, e conversava com minha metade inteligente, Carolina. Como é de se esperar em conversas românticas pela natureza, o tema era leve: falávamos da racionalidade. A pergunta que motivara a conversa pode parecer ingênua, e punha-se mais ou menos como "o que é racionalidade?". E por que uma xícara de café pode ser um problema para essa pergunta. É disso que trata este texto: vamos falar um pouco sobre racionalidade no contexto da teoria da escolha.

Um dos objetivos da teoria da escolha é modelar como os indivíduos tomam decisões. A chave é entender de que tipo de indivíduos estamos falando. Primeiro a teoria estudou os chamados agentes racionais. Ou seja, que fazem a melhor escolha dentre as opções disponíveis. Parece óbvio, mas há um problema: o que faz de uma escolha a melhor?

arte ilustra o desenho de pedaços de pizza e copos, como num rascunho/ estudo
Ilustração: Valentina Fraiz - Instituto Serrapilheira

A resposta a essa pergunta vem de um objeto chamado relação de preferências. Dado um conjunto de opções, um indivíduo teria uma relação de preferências quanto a seus elementos. Se o conjunto for o cardápio de uma pizzaria, o indivíduo teria uma relação de preferência quanto aos sabores disponíveis. Ou prefere muçarela a calabresa, ou o contrário, ou é indiferente entre as duas. Um indivíduo é racional se tem preferências racionais! Ou seja: a racionalidade descola do indivíduo e atrela-se a uma relação binária, que compara opções duas a duas.

E o que é uma preferência racional? Ela precisa ser completa: dadas as opções A e B, o indivíduo sabe compará-las. Ou prefere A a B, ou o contrário. E precisa ser transitiva: se a pizza A é preferível à pizza B e a pizza B é preferível à pizza C, então A é preferível a C. Uma terceira característica desejável é que preferências não sejam suscetíveis à forma como as opções são apresentadas: se a pizza muçarela é preferível à calabresa, essa ordenação não deveria mudar porque a pizza de abacaxi está indisponível. Esta noção foi chamada de invariância pelos cientistas israelenses Amos Tversky e Daniel Kahneman.

Para entender a importância da noção de transitividade, suponha que fosse o contrário: A é preferível a B, e B é preferível a C, mas C é preferível a A (o que se chama preferência cíclica). Nesse caso, se o agente tem a opção A, ele se dispõe a pagar alguma quantidade para ter a opção C, já que esta é preferida. Então, se dispõe a pagar para trocar C por B, uma vez que prefere B a C. Finalmente, pagaria para trocar B por A. Ou seja: acabaria o ciclo com o mesmo A numa das mãos, e menos alguns trocados na outra.

Ser racional, então, é ter preferências racionais? Seria, não fosse um detalhe: as hipóteses de racionalidade podem não se verificar. Um agente pode ter preferências não transitivas. Imagine uma xícara de café sem açúcar e outra com apenas um grão de açúcar. Um agente deve ser indiferente entre as duas. Também é indiferente entre uma xícara com um grão de açúcar e outra com apenas dois grãos. Sucessivamente, conclui-se que o indivíduo é indiferente entre uma xícara com 999 grãos de açúcar e outra com mil. Sob transitividade, a indiferença deve percorrer essa cadeia e culminar em uma conclusão errada: o indivíduo é indiferente entre café sem açúcar e café adoçado, o que é uma conclusão no mínimo equivocada e evidencia uma falha da racionalidade.

E se a transitividade gera situações curiosas, a invariância não fica atrás. Experimentos têm revelado que a apresentação das opções é capaz de influenciar os padrões de escolha. Uma espécie de copo-meio-cheio versus copo-meio-vazio. Um exemplo é a diferença entre desconto e acréscimo. Mais pessoas tendem a comprar um ingresso que custa 100 se dissermos que se for comprado antecipadamente custa apenas 80, do que se dissermos que custa 80 e a compra na véspera do evento adiciona ao valor uma multa de 20. Apesar de se tratar exatamente da mesma situação!

Essas nuances acerca da noção de racionalidade, e a falha dos pilares que caracterizam o comportamento racional, têm consequências sobre a teoria da escolha. Isto porque dificultam, ou impossibilitam, a análise. E alternativas são necessárias.

O estudo de preferências não transitivas levou ao chamado consumidor não transitivo. Introduzido pelo matemático norte-americano Wayne Shafer em um artigo no periódico científico "Econometrica" em 1974, esse conceito permite representar preferências não transitivas por meio de objetos matemáticos conhecidos como funções. Com isto, uma teoria da escolha não transitiva ficava disponível.

Uma outra ideia abstrata deve-se ao norte-americano Herbert Simon. Em 1979, esse cientista sugeriu que decisões não são tomadas tendo em vista a melhor opção possível, mas sim uma opção satisfatória: a versão científica do conhecido "quem não tem cão, caça com gato". Isto deve-se ao fato de a racionalidade utilizada no processo de escolha ser limitada. Essa ideia destravou uma importante área de pesquisa, conhecida como racionalidade limitada, e movimentou a atividade intelectual na interseção da computação, complexidade, economia e psicologia.

Talvez racionalidade seja só um nome pra uma coisa que não entendemos bem. Mas que escolhemos, racionalmente, entender.

*

Edgard Pimentel é professor do Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra e pesquisador do CMUC.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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