Ciência Fundamental

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O que significa a rejeição do Antropoceno como época geológica?

Não, não é uma negação das mudanças climáticas: há um descompasso entre o processo técnico que levou geólogos à rejeição e as discussões na sociedade

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Meghie Rodrigues

No início de março, uma notícia sacudiu a geologia e reverberou no debate público: não, ainda não estamos oficialmente no Antropoceno. Em uma seção de votação, membros da Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário — uma das seções da União Internacional de Ciências Geológicas (IUGS, na sigla em inglês) — decidiram que ainda é cedo para dizer que entramos em outra época geológica.

O termo faz parte do léxico cultural mundo afora há mais de duas décadas, tendo sido proposto pelo biólogo Eugene Stoermer e pelo Nobel de Química Paul Crutzen em um boletim do Programa Internacional de Geosfera-Biosfera em 2000.

Arte ilustra uma pessoa de chapéu analisando algo no chão ao lado de um caderninho, uma mão está deslocada do corpo
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Se o Antropoceno deveria entrar ou não na tabela cronoestratigráfica — ou no livro de história oficial do planeta Terra — é um debate um pouco mais recente, tem cerca de 15 anos. O Grupo de Trabalho do Antropoceno (que também integra a IUGS) fez a proposta formal para essa inclusão, e a ideia seria reconhecer a ação humana como força geológica capaz de modificar o planeta. Com suas bombas atômicas e a onipresente poluição plástica, a humanidade não deixa nada a desejar a intemperismos e vulcões, e estaria levando o planeta ao fim do Holoceno (iniciado há pouco menos de 12 mil anos) em direção a uma nova época: a dos humanos.

Claro que na ciência esses processos são muito meticulosos e em geral bastante burocráticos. No caso da IUGS, sugestões de mudança começam em grupos de pesquisa menores e vão subindo de nível — ou mudando de patamar na hierarquia, quase como o caminho entre as camadas do centro para a casca de uma cebola — até chegar à cúpula da IUGS, momento em que recebe a sanção ou veto final.

No caso aqui, a proposta começou no Grupo de Trabalho do Antropoceno — que no ano passado cravou um lago no Canadá como marcador geológico que representa a nova época. Ou seja, cumpriu-se a condição principal exigida pela ciência em um processo como esse. A proposta então "subiu" para a Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário, mas foi barrada por lá e, pelo menos por ora, está impedida de dar o próximo passo, que seria uma votação da Comissão Internacional de Estratigrafia (reguladora oficial da tabela cronoestratigráfica).

Para o grupo de trabalho proponente da nova época, o decaimento de radionuclídeos presentes na poeira da explosão de bombas atômicas entre as décadas de 1940 e 1950 é um sinal claro do impacto humano sobre o planeta. Da Mongólia ao Ártico, nenhum lugar do mundo está livre dessas partículas radioativas, como demonstram as camadas de barro e rocha no fundo do Lago Crawford. Por isso, pesquisadores argumentam que o Antropoceno deveria ter começado no início da segunda metade do século 20.

No entanto, para 12 dos 18 membros da Subcomissão do Quartenário, a data de corte também poderia ser o início da emissão de poluentes fósseis na atmosfera com a Primeira Revolução Industrial no século 18; ou poderia se situar num passado ainda mais distante, com o início da agricultura. Como argumenta Erle Ellis, professor da Universidade de Maryland nos Estados Unidos e ex-membro do Grupo de Trabalho do Antropoceno, "sua data recente e a sua profundidade são demasiado estreitas para abranger as evidências mais profundas das mudanças planetárias causadas pela humanidade".

A decisão não tem nada a ver com geólogos negando as mudanças climáticas ou o impacto da humanidade sobre o planeta, como gostariam alguns negacionistas e desinformadores. Para Ellis, o Antropoceno, assim como o meteoro que dizimou os dinossauros 65 milhões de anos atrás — ou a produção das primeiras moléculas de oxigênio há cerca de 3,5 bilhões de anos por cianobactérias —, deveria ser considerado um evento. A votação está sendo questionada e o fechamento da questão deve demorar.

Uma consequência prática de todo esse quiproquó é a agitação de ondas para fazer surfar desinformadores e gente com interesses escusos (nada é mais fácil do que distorcer a ciência em função de argumentos fantasiosos). Os efeitos políticos — sobretudo em vista de uma possível volta de Donald Trump ao poder, como lembrou Marcelo Leite — podem ser catastróficos. Afinal, há muitos interesses em jogo e quem está ganhando com as disfunções do capitalismo decerto não quer uma mudança do status quo. Nem que isso custe a perpetuação da existência humana no planeta (o que é a vida de futuras gerações diante de bilhões de dólares no aqui e agora?).

Estando oficialmente em uma nova época geológica ou não, é inegável que já vivemos no Antropoceno. Como disse o climatologista Carlos Nobre à colega Giovana Girardi, "para cientistas climáticos, é óbvio que já estamos [nessa nova época]". A briga pela definição do termo nos corredores da IUGS não exime governos, empresas e sociedade civil da sua maior responsabilidade: a manutenção da vida humana diante dos desafios que ela tem causado a si mesma. A Terra continuará a existir por pelo menos outros cinco bilhões de anos no futuro — possivelmente vai ser engolida por um Sol moribundo em fase de gigante vermelha. A questão que o Antropoceno nos força a pensar é: quanto tempo ainda resistiremos como espécie?

*

Meghie Rodrigues é jornalista de ciência.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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