Ciência Fundamental

O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

Ciência Fundamental - Ciência Fundamental
Ciência Fundamental

O que acontece se dispensamos a revisão por pares?

Um experimento para substituir os artigos científicos tradicionais por preprints nos laboratórios de pesquisa

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Clarice Cudischevitch Kleber Neves

Sobre a mesa de trabalho do Laboratório de Ecologia Vegetal, Evolução e Síntese da UFRN, espalham-se laptops, cadernos, embalagens de pizza, latas de suco e uma bebê. É Valentina, que, antes mesmo de completar um ano, já participa dos preprint clubs do grupo de pesquisa da mãe, a bióloga Vanessa Staggemeier.

Nesses encontros, realizados no segundo semestre de 2023, a pesquisadora e seus dez alunos de graduação e pós-graduação discutiram trabalhos científicos que haviam sido disponibilizados em repositório de preprints —estudos publicados sem antes terem passado pelo processo formal de revisão por pares.

arte ilustra um grupo de pessoas reunidos em torno de uma mesa sobre a qual está uma caixa de pizza; cada um pega um pedaço; os pedaços estão ilustrados com um texto escrito não legível
Ilustração: Julia Jabur/ Instituto Serrapilheira - Instituto Serrapilheira

Na época, o Instituto Serrapilheira, um dos financiadores da pesquisa de Staggemeier, propôs um experimento com um grupo de nove de seus cientistas apoiados: substituir até quatro sessões de seus "journal clubs" —encontros periódicos que grupos de pesquisa tradicionalmente fazem para discutir artigos científicos de suas áreas— por "preprint clubs".

A ideia era entender o quão receptivos para essas práticas estariam os cientistas apoiados, e ao mesmo tempo estimular uma cultura de ciência aberta e de revisão coletiva em repositórios públicos de preprints. Por ser uma instituição privada, sem fins lucrativos, de apoio à ciência no Brasil, o Serrapilheira vem atuando como uma espécie de laboratório de experimentação de práticas pouco usuais na ciência, que as agências públicas não podem se arriscar a abraçar logo de cara.

Após a discussão sobre o preprint escolhido, os grupos deveriam postar um comentário, positivo ou negativo, em uma plataforma própria para isso. Em contrapartida, o Serrapilheira se comprometeu a abastecer cada reunião com pizzas (ou o lanche que quisessem).

O preprint club de Staggemeier do dia 20 de setembro de 2023 foi especial: contou com um bolo em comemoração aos 40 anos que ela completaria dali a quatro dias. Foi também o dia em que o grupo estranhou uma abordagem no preprint em debate, sobre a biodiversidade de um bioma brasileiro.

"Achei que tinha um erro metodológico, porque outros trabalhos de modelagem de nicho ecológico para esse bioma encontraram resultados bem diferentes. Suspeitamos que as palavras-chave utilizadas na revisão bibliográfica não foram amplas o suficiente, já que algumas referências importantes ficaram de fora", Staggemeier conta.

O grupo preparou o comentário para postar no repositório de preprint onde o estudo fora publicado. Nesse meio tempo, porém, o artigo passou pelo crivo da tradicional revisão por pares e saiu num periódico da área de mudanças climáticas. A publicação não demoveu o grupo, que ainda assim decidiu registrar o comentário. O autor não respondeu.

"De todo modo, adorei ver o engajamento dos alunos e a leitura crítica em cima dos trabalhos, procurando por pontos que poderiam ser melhorados e deixando sugestões de como fazê-lo", comenta a bióloga. "Foi uma oportunidade de explicar como funciona a revisão por pares e a necessidade de discutir ciência aberta."

A detecção de um erro em potencial no preprint não significa que aquele fosse um trabalho ruim. Esse é o processo natural da ciência: o caminho percorrido por uma investigação científica é permeado de equívocos, acertos, dúvidas e questionamentos que sempre vão lapidando a pesquisa em direção à sua melhor versão. Um artigo científico não é —ou não deveria ser— a etapa final de um estudo, mas sim parte de uma trilha longa e contínua.

Por isso, quanto mais gente trabalhando de forma coletiva nesse processo —revisando os trabalhos, replicando seus experimentos, discutindo seus resultados—, melhor tende a ser a ciência. Também é por isso que os preprints são tidos como uma das principais formas de alcançar essa ciência colaborativa e aberta.

Em primeiro lugar, eles são baratos: se resumem a um PDF disponibilizado em repositórios públicos online, como o arXiv (que existe desde 1991 e desde então é muito usado sobretudo por cientistas da física e matemática) e o medRxiv, isentos das taxas cobradas pelos periódicos científicos. Além disso, seu conteúdo é aberto, diferentemente das paywalls das publicações tradicionais.

Eles também são uma forma mais célere de compartilhar o andamento das pesquisas, já que o trabalho não passa pelo processo formal de revisão por pares das revistas, geralmente demorado e trabalhoso. Foi por isso, aliás, que os preprints se popularizaram na pandemia de Covid-19, quando a rapidez na divulgação dos resultados das pesquisas em curso era essencial para se combater o vírus.

E, por mais que a revisão por pares seja considerada o filtro da "boa ciência", na prática não é bem isso que acontece. Um estudo de fevereiro de 2024 (publicado como preprint) observou que, numa amostra de 1.035 estudos revisados por pares, 19% deles continham dados problemáticos. Na maioria dos casos, havia imagens alteradas ou reutilizadas de forma questionável —e nem por isso foram menos citados ou publicados em revistas de menor impacto.

Publicar como preprint não significa que o trabalho não será avaliado. Há plataformas para a revisão coletiva desse tipo de estudo, como PubPeer e PREreview, nas quais a própria comunidade científica se engaja na revisão, sem a intermediação das revistas científicas tradicionais, mas elas ainda dependem de uma adesão maior dos cientistas. Além disso, após uma primeira versão como preprint, o trabalho pode ser melhorado e depois sair num periódico especializado.

Foi o que a própria Vanessa Staggemeier fez em outubro de 2023, quando publicou seu primeiro preprint. O trabalho, que levou cinco anos e envolveu 24 pesquisadores, traz uma "árvore genealógica" inédita das mirtáceas, família que abriga espécies como a goiaba, a pitanga e a jabuticaba. Em maio de 2024, o estudo saiu no American Journal of Botany, revista tradicional da Sociedade Botânica da América.

Os cientistas apoiados pelo Serrapilheira ainda não são usuários ávidos de preprints: apenas 73% deles de fato adotam esse formato, mesmo que incentivados a disponibilizar seus trabalhos publicamente (seja por meio de preprints, seja publicando em revistas de acesso aberto etc). O número ainda está abaixo da média mundial, que é de 76% para o caso das áreas financiadas pelo instituto (ciências naturais, ciência da computação e matemática).

Mas, pelo menos nos preprint clubs, a maioria dos participantes relatou ter gostado da experiência: dos nove, seis informaram que pretendem fazer mais edições e continuar postando comentários públicos sobre trabalhos científicos de suas áreas. "Hoje tento navegar com meus alunos para uma ciência mais aberta", afirma Vanessa Staggemeier.

*

Clarice Cudischevitch é jornalista e gerente de Comunicação no Instituto Serrapilheira. Kleber Neves é doutor em neurociências e gestor de Ciência no Instituto Serrapilheira.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.