Ciência Fundamental

O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

Ciência Fundamental - Ciência Fundamental
Ciência Fundamental

Mergulhamos diariamente em busca de um peixe em extinção

Como a procura por uma raia nos revela mais do que a raia em si

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Gabi Longo Lucas Andrade

Seis jovens passam 30 dias numa ilha paradisíaca onde não mora ninguém. O que mais parece chamada de reality show na verdade faz parte de uma pesquisa científica. No Parque Estadual da Ilha Anchieta (PEIA), uma Unidade de Conservação (UC) em Ubatuba, litoral norte de São Paulo, voluntários empreendem campanhas de monitoramento da fauna marinha e mergulham todos os dias em busca de uma espécie ameaçada de extinção: a raia-chita (Aetobatus narinari). A pesquisa está associada ao projeto Mergulhando na Conservação, coordenado pelo Instituto de Oceanografia da USP.

Nós participamos de uma dessas campanhas, atraídos por uma foto dessa raia que tem o dorso preto cheio de pintinhas brancas. Linda. No entanto, entender a importância dessa espécie para além da aparência envolveu mergulhos, não só no mar, mas nos elos entre a ecologia e a história humana.

ilustração mostra um ambiente de floresta e mar, com animais como saguis, capivara e raia
Ilustração: Lucas Andrade / Instituto Serrapilheira - Instituto Serrapilheira

Para explicar o escopo do programa, é preciso retroceder no tempo. Muito antes da invasão portuguesa, a ilha já era ocupada pelos tupinambás, provavelmente para plantio. Entre a ilha e o continente existia um fluxo de espécies da fauna e da flora, formando a Mata Atlântica que conhecemos hoje. Por não ser um lugar tão afastado da terra firme (cerca de 500 metros), é bastante provável que esse fluxo fosse intenso. Assim, a composição de espécies da ilha não era tão diferente de outros trechos da costa. Era uma época em que a intervenção humana no ambiente estava associada à sua manutenção e não à sua degradação.

Séculos depois, em 1918, um presídio se instalou na ilha e a paisagem sofreu modificações, uma vez que os detentos eram obrigados a pescar e a coletar madeira para lenha. Na década de 1950, além dos mais de 600 presos, a ilha abrigava os policiais e suas famílias, que somavam uma população de bom tamanho.

Pode-se imaginar que o volume de madeira retirada do ambiente e de peixes pescados era, portanto, considerável, tanto que o ambiente marinho, antes conhecido pela profusão de tubarões, atualmente registra raras aparições desses predadores. E a floresta que antigamente cobria os dois morros da ilha hoje apresenta falhas que podem ser avistadas dos pontos mais altos.

É curiosa a persistência dessa biodiversidade reduzida, uma vez que o presídio foi desativado em 1954 e a partir de então a ilha nunca mais teve uma ocupação significativa, tornando-se uma UC em 1977. As áreas exploradas poderiam ter se regenerado ao longo desses anos, mas não foi isso que ocorreu.

Em 1983, o PEIA estava sob pressão da crescente especulação imobiliária em Ubatuba, e existia a ideia de transformá-lo em um resort. Para evitar que isso acontecesse, autoridades da época, junto ao Zoológico de São Paulo, levaram para o parque 148 animais de 16 espécies nativas do Brasil. Na ilha, porém, não havia nenhum predador ou parasita capaz de controlar a população dessas espécies. Com o passar do tempo, elas foram se reproduzindo desenfreadamente, tornando-se invasoras. Segundo um estudo do Programa Biota da FAPESP, oito cutias (D. azarae x D. leporina) que foram soltas em 1983, em 2010 chegavam a 1160 indivíduos; os cinco saguis (C. penicilatta) passaram a ser 654; as sete capivaras (H. hydrochaeris), 292; os 13 quatis (N. nasua), 149.

A multiplicação desses animais causou efeitos em cascata na vegetação e na paisagem: as capivaras e as cutias se alimentam dos brotos de algumas plantas nativas, como os palmitos; os saguis e os quatis, de ovos de aves, responsáveis pela dispersão de sementes. Resultado: tanto a fauna quanto a flora do PEIA são muito diferentes do que seria esperado para aquele lugar, com menor diversidade de espécies nativas e grandes populações de espécies invasoras.

O que achamos mais incrível na ecologia é que ambientes distintos podem compartilhar problemas parecidos: as invasões em terra firme também podem ocorrer em ambiente aquático. A raia-chita, por exemplo, se alimenta de pequenos animais, entre eles os moluscos, e por isso suspeita-se que ela esteja regulando as populações de bivalves invasores, que por sua vez competem com a fauna nativas por espaço nos costões rochosos. Mas ainda é cedo para fazer essa afirmação, já que pouco se sabe sobre o papel ecológico da raia-chita. Investigá-lo é um dos objetivos da nossa expedição.

Ao longo daquele mês gravamos toda a viagem em forma de uma temporada de podcast narrativo, o Sinal de Vida. O que poderia parecer obsessão por uma única espécie foi, na verdade, uma jornada de reflexões que nos levou a concluir que essa raia representa muito mais do que ela mesma. Proteger a raia-chita é não só proteger as relações ecológicas das quais ela faz parte, como conservar as espécies e ambientes envolvidos nessa trama. Ela é muito mais que um peixe bonito nadando no mar.

*

Gabi Longo e Lucas Andrade são biólogos e criadores do podcast Sinal de Vida, disponível em todas as plataformas de áudio.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.