Cozinha Bruta

Comida de verdade, receitas e papo sobre gastronomia com humor (bom e mau)

Descrição de chapéu pirataria

Mais 5 dilemas éticos para atrapalhar sua compra de vinhos

Trabalho escravo na colheita das uvas não é exclusivo do Brasil nem o único podre do negócio vinícola

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Quero avançar um pouco no tema da coluna passada. Nela, escrevi que boicotar os vinhos da Salton, da Aurora e da Garibaldi servem mais como alívio de consciência e sinalização de virtude do que como uma ação efetiva para pôr fim ao trabalho escravo.

É muito fácil abrir mão de algo que não faz falta alguma, quando as opções de substituição vêm às centenas. Mas, então, substituir por o quê? Você tem certeza de que o vinho substituto atende a todos os requisitos éticos, ambientais, ESG e o raio que o parta?

Escolher vinhos é uma tarefa difícil em vários aspectos, mas vou me furtar de comentar as dificuldades técnicas. Como se trata de uma indústria de atuação internacional, mas de atores menores e mais numerosos do que, digamos, a cervejeira, fica realmente complicado saber a história por trás de cada produtor, de cada garrafa.

Vinhedo na região de Champagne, França, onde também já houve casos de trabalhadores em condição análoga à escravidão - Pascal Rossignol/Reuters

As armadilhas e obstáculos éticos estão por toda parte e raramente, como no caso de Bento Gonçalves, elas vêm à tona.

Minha intenção é, confesso, confundir a cabeça de quem se deixou seduzir por uma visão simplista do episódio. Bugar o pensamento de quem acha que vai salvar o mundo ao deixar de entregar 70 contos para os fabricantes nacionais de espumante.

Vamos a cinco questões éticas bastante frequentes para atrapalhar sua próxima compra de vinho.

1. Escravidão não existe só no Brasil

Quando eclodiu o escândalo de Bento Gonçalves, eu já imaginava que casos semelhantes poderiam ter acontecido em outros países. A ocorrência de abusos nas relações de trabalho é favorecida (não disse justificada) pela natureza cíclica do negócio do vinho.

A vinicultura é uma atividade híbrida, metade agrícola, metade industrial. Na indústria, sempre há algo a se fazer: prensar uvas, fermentar, engarrafar, gerenciar estoques, distribuir etc. etc. No campo, há o tempo do trabalho frenético e o tempo de deixar as parreiras dormentes.

Quase todo produtor, no Brasil e no mundo, opta por contratar mão de obra temporária nos dois ou três meses da colheita. Por comodidade, economia e algum cinismo –e aí entra a perversidade intrínseca ao capitalismo–, preferem terceirizar essas contratações. Têm responsabilidade legal sobre os trabalhadores, mas não se envolvem no cotidiano da lida.

Busquei sobre trabalho análogo à escravidão em vinhedos da África do Sul –afinal, país semelhante ao Brasil no que se refere à desigualdade social. Bingo.

Fizeram até um documentário chamado "Bitter Grapes" ("Uvas Amargas", 2016), sobre condições degradantes de trabalhadores que produzem vinhos para serem enviados a preço de banana para países escandinavos.

Essa chaga, porém, não se restringe à periferia do mundo capitalista.

Denúncias de trabalho escravo complicaram produtores da região francesa de Champagne, que produz as bebidas mais chiques do mundo, em 2021.

Segundo o jornal inglês The Times, oito desses vinhateiros "teriam pagado a catadores de uva, a maioria do Leste Europeu, menos que um salário-mínimo, além de alojá-los em condições sórdidas".

Operação com PRF, MPT e Ministério do Trabalho resgatou, na noite de 22/3/23, trabalhadores mantidos em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves (RS) - Divulgação

2. Lavagem de dinheiro e limpeza de reputações

Uma reportagem da revista americana Wine Spectator levantava, já em 2013, a suspeita de que mafiosos russos e chineses estariam comprando vinícolas na França para lavar dinheiro.

Em 2020, investigava-se a infiltração de mafiosos –os originais– no negócio italiano do vinho.

Como saber que vinho pertence a uma organização criminosa? Quase impossível, já que a discrição é a chave desse delito em particular.

Há ainda companhias que têm, como proprietários, magnatas com uma carteira de negócios nebulosa dos pontos de vista social e ambiental –e que querem lustrar a própria imagem com o glamour do vinho.

Mineradores escandinavos, petroleiros sul-americanos, essa galerinha. Em comum, eles sempre montam vinícolas "state-of-the-art", o máximo do máximo em tecnologia e práticas agrícolas e industriais.

No Brasil, temos o caso da Guaspari, no interior de São Paulo, chique no último e propriedade de uma família que pressionou as autoridades para explorar recursos minerais em terras indígenas.

3. Vinhedos são monoculturas

Áreas extensas de plantação de um mesmo produto desgastam o solo e bagunçam a bússola do ecossistema. Nesse ponto, vinhedos não são muito diferentes de fazendas de soja, cana-de-açúcar ou algodão.

4. A praga dos pesticidas

Se não tem nada escrito na embalagem, tem pesticida. Vale para pimentão, vale para tomate, vale para o vinho.

5. Falsificação e contrabando

Um monte de gente está em listas de transmissão do WhatsApp com ofertas de vinhos argentinos a preços escandalosamente baixos. Malbecão de 300 paus por setentinha. Amizade, ou é contrabando ou é falsificação. Em outras palavras: ao comprar, ou você é criminoso ou é só otário mesmo.

(Siga e curta a Cozinha Bruta nas redes sociais. Acompanhe os posts do Instagram e do Twitter.)

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.