Darwin e Deus

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Darwin e Deus - Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Com Ursula K. Le Guin, fantasia se liberta de raiz eurocêntrica

Relançamento de série Terramar no Brasil traz visão complexa sobre magia e poder

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Se você ainda não conhece os romances de fantasia da série Terramar, da escritora americana Ursula K. Le Guin (1929-2018), recomendo fortemente que você dê uma chance aos livros. Conforme contei nesta reportagem, a série está sendo relançada no Brasil na íntegra (são seis livros, no total), com novas traduções e ilustrações de cair o queixo.

O mundo fantástico de Le Guin é um planeta-arquipélago no qual a magia e os dragões são reais e os povos "bárbaros" são os únicos com aparência europeia. Confira abaixo a íntegra da entrevista que fiz com Victor Gomes, publisher da editora Morro Branco, responsável pelas novas versões brasileiras dos livros.

capa de livro
Capa de 'O Feiticeiro de Terramar', livro da escritora Ursula K. Le Guin relançado agora no Brasil pela editora Morro Branco - Reprodução

Embora a obra de ficção científica de Le Guin tenha ganhado muitos leitores no Brasil recentemente, a impressão que se tem é que Terramar não conseguiu chegar a um público amplo por aqui até agora. A que o sr. atribui essa dificuldade e, mais importante, qual é a estratégia para mudar isso?

Acredito que temos um problema macro e um mais específico. Primeiramente eu acredito que existe um certo preconceito com a literatura do gênero fantástico, comumente vista como inferior ou restrita a um nicho específico, mas é justamente uma das principais filosofias da Morro Branco mostrar como podemos utilizar os quase infinitos elementos da Ficção Científica e Fantasia para explorar questões como racismo, preconceito, sexualidade e gênero. Com as palavras de autoras como Octavia Butler, Ursula Le Guin, N.K. Jemisin e outros, buscamos ativamente mostrar ao público em geral como é possível utilizar as estruturas fantásticas do gênero como um subterfúgio para discutir as principais questões que afligem o dia a dia da nossa sociedade contemporânea.

Agora falando especificamente de Terramar, temos uma questão de posicionamento. Trata-se de uma das principais séries de fantasia de todos os tempos, com influências que podem ser vistas de Harry Potter à "O Nome do Vento" de Patrick Rothfuss, sendo presença constante nas listas de maiores livros de fantasia, como a recentemente publicada pela Time Magazine e também pela Esquire, posicionando "O Feiticeiro de Terramar" no top 3, ao lado de "O Senhor dos Anéis" e "A Quinta Estação" da Jemisin. Quando começamos a trazer as obras de Octavia Butler para o Brasil, começando em 2016 com Kindred, focamos nossos esforços em posicioná-la como a Grande Dama da Ficção Científica que ela sempre foi mundo afora, e hoje acredito que o público entende um pouco melhor a importância de suas palavras. Com a eterna Ursula pretendemos seguir a mesma linha e enveredar todos os esforços para posicioná-la não como mais uma autora, mas como alguém que revolucionou o gênero, sendo influente tanto no mundo da Ficção Científica quanto na Fantasia.

E esse reconhecimento à importância da autora e do ciclo Terramar começa com as edições que vamos publicar. Ao invés de reiniciar a publicação das obras com versões mais simples, optamos por trazer ao público edições definitivas, todas em capa dura, com ilustrações do inigualável Charles Vess e diversos textos extras que ajudam a expandir este universo único criado pela Ursula. Assim, presenteamos os fãs de longa data que estavam sedentos para que esta série fosse publicada em sua totalidade, mas também damos todos os elementos possíveis para que novos leitores possam mergulhar fundo neste universo e em tudo que ele tem a oferecer.

A maneira como as narrativas do ciclo invertem o padrão dos mundos de fantasia, com etnias de aparência europeia inicialmente "bárbaras" e povos de pele mais escura como os heróis é um dos elementos mais importantes do mundo imaginário de Terramar. É simplista demais classificar os livros como a primeira fantasia antirracista? Como lidar com esse tema considerando a força considerável de ideias racistas no público que é o leitor mais fiel do gênero?

Esse efetivamente é um problema muito sério que aflige esse gênero, inclusive muito do preconceito dos leitores de outros gêneros literários advém dessa redoma que seus autores e leitores mais puristas resolveram colocar ao seu redor, mas que na prática simplesmente refletem muitos dos preconceitos que assolaram a sociedade por tanto tempo e que até hoje perduram. Mulheres, negros e imigrantes por muito tempo tiveram suas vozes abafadas, então o gênero acabou sequestrado e limitado a devaneios sobre viagens intergalácticas para conhecer "fêmeas selvagens com 2 ou 3 pares de seios".

Nossos autores Samuel Delany e Octavia Butler, por exemplo, tiveram um caminho extremamente árduo para deixar suas marcas no gênero, mas mesmo quando autores brancos tentavam trazer um pouco de diversidade isso era malvisto ou "sutilmente" silenciado. No caso de Ursula, isso lhe causava problemas até na produção de suas capas, com os editores afirmando que "os leitores brancos de 1967 não estavam preparados para aceitar um protagonista não-branco", já era controverso o suficiente ela trazer essa diversidade nos livros, mas ter a audácia de colocar isso diretamente nas capas? O mais triste é que mesmo 40 anos depois de seu lançamento, quando o renomado estúdio Ghibli realizou uma adaptação das obras, todos os personagens magicamente se tornaram brancos, e quem teve o primeiro contato com este universo através deste filme, simplesmente perdeu muito do que a obra tem a oferecer e que esperamos retificar agora.

Mesmo que utilize elementos de uma fantasia mais tradicional na construção de seu universo, Terramar é sim considerada uma série pioneira ao quebrar as tradicionais dinâmicas raciais do gênero e apresentar personagens diversos e fora dos padrões eurocêntricos da época.

Acredito que a melhor forma de lidar com o tema é justamente atuar como um veículo para que vozes diversas e relevantes possam ecoar mais forte e atingir novos públicos, mostrando todo o potencial que o gênero tem a oferecer. A vitória de N.K. Jemisin no Hugo Awards (principal prêmio da categoria) 3 vezes seguidas com todos os livros da trilogia "A Terra Partida" foi uma ótima resposta aos movimentos que tentavam interferir na premiação e impedir que livros com maior diversidade tivessem qualquer protagonismo. Ao oferecermos diferentes pontos de vista aos nossos leitores, apresentamos realidades distintas de suas próprias e criamos maior empatia com o próximo. É a única maneira de mudar este status quo.

Em inglês, a edição encadernada e ilustrada com todos os livros do ciclo traz sempre textos finais, que incluem a descrição geográfica e histórica de Terramar, alguns contos que não se encaixam na cronologia principal e um ensaio da autora. Como esse material será encaixado nas edições separadas de cada livro?

Sem dúvidas, como mencionado acima, isso faz parte do projeto que estamos buscando implementar e isso só será possível trazendo todas as nuances e experiências que a Ursula e Terramar tem a oferecer. Estamos inclusive partindo de uma base similar à edição encadernada e ilustrada a que você está se referindo, mas desmembrada em seis livros, todos com a mesma identidade visual e comentários da própria Ursula, ilustrações de Charles Vess e textos extras. Concentramos grande parte dos contos extras nos livros 5 e 6, mas teremos diversas surpresas ao longo desta jornada. O que eu posso lhe garantir é que ao final dela teremos absolutamente todos os textos sobre este incrível universo de Terramar publicados, ainda que tenha certeza de que as pessoas vão ficar ansiosas por mais.

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