Darwin e Deus

Um blog sobre teoria da evolução, ciência, religião e a terra de ninguém entre elas

Darwin e Deus - Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

A complexidade do DNA vai muito além do que chamamos de 'genes'

Interação entre moléculas de RNA e regiões reguladoras complicam papel do genoma

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Foi preciso que eu escrevesse uma reportagem sobre os possíveis mecanismos genômicos por trás da perda da cauda nos nossos ancestrais pra que me caísse uma ficha (eu sei, expressão antiquada) que já deveria ter caído há muito tempo: a imagem que quase todo mundo tem sobre a maneira como o DNA funciona é um negócio absurdamente antiquado, especialmente quando a gente fala em "genes".

A definição de "gene" que as pessoas aprendem no ensino médio (ao menos aquelas que não foram ou ainda não são submetidas à excrescência educacional apelidada de "novo ensino médio") é um negócio relativamente simples. Segundo essa visão, o DNA contém, em suas "letras" químicas, a receita para a produção de proteínas. A cada gene no DNA corresponderia uma sequência de letras quase equivalentes de RNA (molécula "prima" do DNA). E o RNA correspondente àquele gene, por sua vez, serviria de base para a produção de uma única proteína no organismo.

Mãe chimpanzé segura a filha para uma catação minuciosa de piolhos em sua cabeça - Frans de Waal/Divulgação

Acontece que, para começo de conversa, a correspondência "1 gene = 1 molécula de RNA = 1 proteína" simplesmente não existe em grande parte dos seres vivos. E os resultados da pesquisa sobre a ausência de rabo em primatas como nós dependem precisamente disso para fazer sentido.

É que, na verdade, os genes são comumente compostos de (pelo menos) duas partes bem diferentes: íntrons e éxons. Os éxons parecem, à primeira vista, corresponder à definição antigona de gene: são eles que efetivamente vão servir como base para a fabricação de proteínas. Já os íntrons são regiões de DNA que até viram RNA, mas são editadas -- cortadas fora por mecanismos específicos -- antes da produção de componentes proteicos.

Parece um megatrabalho à toa, do nosso ponto de vista, certo? Para que produzir o RNA inteiro se os íntrons vão ser cortados de qualquer jeito?

Bem, ocorre que existe um negócio chamado "splicing alternativo": em determinadas condições, dá pra combinar os éxons de diferentes maneiras, deixando um ou outro de fora. Resultado: mais de uma proteína vindo "do mesmo gene". (Pra piorar, alguns éxons também não acabam virando proteínas de qualquer jeito, mas podem ter outras funções.)

Mas calma que piora. Mesmo fora dos íntrons, existem inúmeras regiões do DNA que parecem "não servir para nada" e, mesmo assim, em diferentes circunstâncias, podem influenciar de forma decisiva como uma proteína é produzida. No estudo sobre o fim das caudas dos grandes símios e humanos, esse papel cabe aos "elementos Alu" de que falei na reportagem linkada. Eles estão espalhados por todo o genoma humano e, ao menos nesse caso, têm uma função crucial.

Dois deles, dispostos de lados opostos em íntrons diferentes, fazem a célula "pular" a leitura de um éxon, desligando assim um mecanismo aparentemente crucial para a formação de caudas.

E esse é só um exemplo. Há muitas outras modalidades de influência que não têm nada a ver com os genes e, às vezes, nem mesmo com o RNA. Não é à toa que ainda falta muito para entendermos como o material genético influencia o desenvolvimento e a saúde dos seres vivos.

Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Repórter de ciência e colunista da Folha. Autor de "Homo Ferox" e "Darwin sem Frescura", entre outros livros

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.