Uma preocupação frequente e mais do que legítima de quem pensa em fazer alguma trilha mais exigente que o passeio no parque mais próximo é como evitar que a caminhada termine com bolhas, torções e outros acidentes de percurso. Na verdade, é essencial ter em mente que estamos falando de uma atividade que sempre vai envolver algum nível de risco que vai desde uma crise de alergia a plantas ou inseto até a uma fratura mais grave, fruto de passo em falso no lugar menos esperado.
Todo trilheiro experiente tem histórias para contar de dores as mais variadas, bem como de soluções improvisadas para combatê-las. Quem lê os relatos dos peregrinos do Caminho de Santiago, por exemplo, vai invariavelmente ser informado de que deve passar Vick VapoRub nos pés antes de calçar as meias para evitar bolhas. Posso garantir, por experiência própria, que isso só deve funcionar para quem tem fé em seu efeito. O cheirinho até que ficou bom, mas o resultado final foram nada agradáveis bolhas canforadas.
Para fugir dos achismos e do que deu certo para cada indivíduo mas não se aplica como regra geral, o blog foi ouvir um especialista, o ortopedista e médico do esporte Roberto Ranzini, membro do corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein e do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, ambos de São Paulo.
Ele, que também tem experiência em trilhas, respondeu a algumas dúvidas que foram encaminhadas por leitores ao blog nas últimas semanas.
Por onde o senhor aconselharia começar a prevenir acidentes em trilhas e caminhadas por terrenos acidentados? O principal, sem dúvida nenhuma, é a escolha de um bom calçado. E bom calçado é aquele que tem solado mais rígido, de borracha, com recortes que permitam boa aderência a todo tipo de solo. Também é importante que tenha cano alto, para evitar torções. E que esse calçado seja comprado no final de um dia em que se tenha praticado algum esforço, para que os pés estejam mais inchados, e que seja provado com as meias esportivas que serão utilizadas com ele, de preferência de material sintético, que permita a rápida evaporação da umidade.
Por falar de umidade, os calçados e meias impermeáveis resolvem o problema? É importante ter em mente que nenhuma impermeabilização dura toda a vida. Mesmo calçados, meias e agasalhos que se dizem impermeáveis, com o tempo, perdem a impermeabilização. Para recuperá-la, há sprays específicos no mercado, mas são caros e difíceis de encontrar. Então, eles são bons, sim, mas é bom conferir se aquele calçado já bem usado e confortável ainda está com sua impermeabilização em dia.
É comum que os lojistas empurrem calçados com o argumento de que depois eles vão lassear. Isso deve ser considerado? Não, não existe isso de ‘depois lasseia’. O que existe é treinar muito com aquele calçado antes de levá-lo para a trilha, para que esteja perfeitamente adequado ao formato do pé e à sua pisada. Tem que ser o tamanho justo, nem apertado, nem folgado, pois se for folgado provavelmente vai gerar bolhas.
Ah, as bolhas. Como fugir delas? As bolhas, que têm o nome técnico de flictenas, nascem do atrito entre a pele, mesmo coberta com meia, e o calçado. Alguns fatores podem ajudar a preveni-las, como treinar bastante com o calçado para adequá-lo ao pé nos pontos de atrito. Muita gente compra uma bota linda e vai estrear numa trilha logo de cara, aí é provável que dê problemas. E também evitar a umidade. Se uma meia se molhar, ou ficar muito úmida de suor, é preciso trocá-la imediatamente, caso contrário as lesões serão prováveis.
E se mesmo com todos os cuidados elas aparecerem, o que fazer? Em primeiro lugar, nunca fure a bolha a menos que tenha condições de fazer um curativo bem feito. Se não tiver nada à mão, cubra com um curativo até chegar a um lugar onde possa fazer um microfuro com uma agulha bem fininha esterIlizada no fogo. Deixe-a assim e cubra-a com o curativo que vai absorver o líquido enquanto evita o atrito do local afetado com o calçado, até a pele se curar.
Alguns treinadores recomendam o uso de meias de compressão para evitar dores nas panturrilhas. Isso procede? Meias de compressão são recomendadas para evitar problemas vasculares quando a pessoa vai ficar muito tempo em pé ou sentada, como em uma longa viagem de avião, por exemplo. Em longas caminhadas elas não têm uma função, porque nessa atividade os principais problemas são lesões musculares, torções ou cãibras.
Tem jeito de evitar cãibras? Não existe um consenso científico sobre o que provoca as cãibras e como evitá-las. A teoria mais aceita é que aponta a falta de potássio como causa, mas também pode ser falta de sal, má metabolização do cálcio, frio, enfim, não há uma resposta única.
E para as dores nas costas? Aí, em termos de equipamento, o melhor é só usar mochilas com alça subabdominal, que tira o peso da carga dos ombros e o transfere para a bacia e as pernas. A teoria de que a mochila não deve exceder 10% do peso corporal só funciona quando a pessoa não está fazendo uma trilha mais complexa, que exige equipamento e vai superar facilmente os 7 ou 8 quilos, no mínimo. Mas esse percentual não faz diferença se o peso estiver distribuído corretamente pelos membros inferiores.
Que outros conselhos o senhor daria a quem pretende encarar uma trilha de longa distância? O principal deles, antes mesmo que o dos equipamentos, que podem incluir bastões, calças de materiais adequados que secam rapidamente e evitam arranhões e ferimentos, luvas etc, é planejar com antecedência o treino mais adequado àquela atividade que vai ser realizada. Treinar muito, o máximo possível em condições similares às que vai enfrentar.
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