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É Logo Ali - Luiza Pastor
Luiza Pastor
Descrição de chapéu

Voluntária brasileira abre novos horizontes a aposentado inglês

Keith Mackrill sai do isolamento motivado pela atitude da viajante Kami Queiroz

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Hoje vamos contar uma história um pouco diferente neste blog. A história da sulmatogrossense de Campo Grande Kami Queiroz, 33, que um dia resolveu estudar inglês na Inglaterra. Era março de 2022, o mundo engatinhava para fora do momento mais trágico da pandemia de Covid-19. Com alguns anos de trilhas, ela quis conhecer a montanha mais alta do Reino Unido, a Ben Nevis, com seus 1.344 modestos metros. Mas não bastava chegar lá —foi caminhando os150 quilômetros da capital Glasgow até Fort William, sim, essa mesma, a cidade de Harry Potter, de onde chegamos a conversar para falar de, claro, sua caminhada.

Ao terminar a trilha, entretanto, e para evitar a convivência inercial com outros brasileiros que comprometeria seu treino da língua, Kami se inscreveu em um programa de voluntariado, o Workaway Volunteer que atende a cada vez maior população idosa do Reino Unido. E assim foi parar na cidade de Margate, no sudoeste da Inglaterra, onde conheceu Keith Mackrill, 68, e onde começa outra história bem mais emocionante do que sua aventura pelos verdes campos escoceses, que o blog não quis deixar de mostrar.

Keith Mackrill, aos 68 anos, monta em camelo no Egito
Depois de passar a vida inteira só trabalhando, Keith Mackrill monta em camelo no Egito, acompanhado de Kami Queiroz - Arquivo pessoal/Kami Queiroz

Contador aposentado e sem familiares próximos, Keith havia ficado muito debilitado durante o isolamento da pandemia. Precisava de ajuda para tudo e cabia a Kami fazer a faxina, preparar seu café da manhã, arrumar a bagunça de quem tinha como único hobby comprar tralhas pela internet. "Eu o achava muito peculiar", conta ela, "quieto, tímido, não falava quase nada, sempre muito sozinho". Puxando assunto e contando piadas, "com aquele jeito brasileiro que a gente tem", a amizade acabou se instalando entre os dois.

"Um dia perguntei o que gostaria de conhecer em seu país e ele disse que era Oxford", continua a assistente de pós-produção audiovisual, que preparou todo um roteiro acessível para a visita com o novo amigo, sua cadeira de rodas e a bengala que o sustenta por, no máximo, alguns minutos em pé. "Fomos passear de barco e ele chorou muito", lembra, emocionada. Da boa experiência que tirou Keith do isolamento, veio a ideia de levá-lo para Chipre, onde passariam o Natal e o Ano Novo.

Kami Queiroz e Keith Mackrill brincam em frente às pirâmides no Egito
Kami Queiroz e Keith Mackrill brincam em frente às pirâmides no Egito - Arquivo pessoal

"Eu havia saído da Inglaterra, mas mantido contato com ele e sabia da história de seu último Natal, quando o coach do voluntariado havia feito uma reserva para o jantar com um sobrinho que nunca apareceu, e foi muito decepcionante", continua. Ante o convite de Kami, seguiram para Chipre e de lá disse que não queria voltar ao Reino Unido por causa do inverno. "Ele não gosta de frio", explica.

Para escapar do frio com o qual conviveu por anos sozinho, a dupla seguiu de Chipre direto para o Egito, onde perceberam que não é fácil assegurar acessibilidade e transporte para pessoas com deficiências ou restrições alimentares como tem Keith, que perdeu vários dentes durante o isolamento e só come alimentos pastosos. De lá, seguiram para a Turquia, de onde Kami falou com o blog. "Ele gostou tanto que agora quer conhecer as sete maravilhas do mundo", conta ela rindo. E a programação segue até maio, passando por Israel, Jordânia e voltando para a Inglaterra porque ele quer conhecer Liverpool, "a terra dos Beatles", que ele sonhava muito conhecer mas nunca se permitiu, "a vida dele foi só trabalhar, não casou nem teve filhos, não aproveitou nada e só juntou dinheiro".

Kami Queiroz acampa na Escócia, a caminho do Ben Nevis, montanha mais alta do Reino Unido
Kami Queiroz acampa na Escócia, a caminho do Ben Nevis, montanha mais alta do Reino Unido - Arquivo pessoal/Kami Queiroz

Para o próximo inverno do hemisfério norte, a dupla tem planos mais altos: vão passar seis meses no Brasil, e o Natal será com a família de Kami. "Esse foi um dos pedidos que ele colocou na lista de ano novo que fez por primeira vez na vida: conhecer minha família no Brasil", se orgulha ela. Nada mal para quem há um ano estava em acelerado processo de depressão, sofrendo de síndrome de acumulação, bebendo litros de licor de amarula largado numa cama e perdendo massa muscular devido à imobilidade. "Ele agora quer viver, depois de ter sido resgatado pelo programa de voluntariado", destaca Kami.

Ela, que se descreve como "viajante do mundo", faz questão de dizer que todas as suas viagens incluem o voluntariado. "Já fazia antes de sair do Brasil, e em todo lugar do mundo a que vou, vou fazendo voluntariado", ressalta. E, embora as muitas tarefas envolvidas nos cuidados do dia a dia com seu amigo inglês não lhe tenham permitido ainda filmar o roteiro de suas viagens, Kami estuda viabilizar o sonho mais ambicioso de Keith: conhecer as sete maravilhas do mundo moderno (a saber: Cristo Redentor no Brasil, Machu Picchu no Peru, Chichén Itzá no México, Coliseu na Itália, as ruínas de Petra na Jordânia, o Taj Mahal na Índia e a Grande Muralha da China). "É um desafio imenso levar uma pessoa com tantas restrições para esses lugares", pondera, mas já às voltas com o planejamento da empreitada.

No trabalho como voluntária, todas as despesas de viagem, hospedagem e alimentação ficam por conta de Keith. "Eu só gasto com minhas despesas pessoais", explica, lembrando que hoje trabalha remotamente na pós-produção de um reality show que deve estrear em breve em uma emissora brasileira.

"Para mim, como brasileira, com toda essa diferença cultural e de idade entre nós, vejo que há muito julgamento de pessoas que não entendem o voluntariado, pensam que pode ser interesse, não enxergam que a realidade do futuro é que cada vez vai haver mais idosos precisando de apoio em todo o mundo, e que eles estão cada vez mais abandonados, mesmo tendo tanto para nos ensinar", conta Kami.

"Eu cheguei para o Keith em um momento em que ele ainda consegue fazer muita coisa, vai haver uma hora em que não vai dar mais, então tem que aproveitar enquanto não chega a esse estágio, porque a mudança de vida para ele, viajar, trouxe muita energia e vitalidade para seu corpo, então é possível concluir que o mais importante é viver o agora, a cada momento", elabora. E alguém duvida de que ela está coberta de razão?

Erramos: o texto foi alterado

Kami Queiroz é sulmatogrossense, e não matogrossense como inicialmente publicado.

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