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É Logo Ali - Luiza Pastor
Luiza Pastor
Descrição de chapéu Todas escalada

'Dois sherpas' dá vida, sonhos e textura aos heróis anônimos das façanhas alheias

Livro do argentino Sebastián Martínez Daniell cria no Everest uma reflexão sobre o colonialismo e o elitismo de quem paga por serviços nos diferentes contextos históricos

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"Dois

sherpas espreitam o abismo. As cabeças vasculhando o nadir. Os corpos estirados nas rochas, as mãos apoiadas na beira de um precipício. Parecem esperar alguma coisa. Mas sem ansiedade. Com um repertório de gestos serenos que se equilibram entre a resignação e o ceticismo. (...) Aponta com um gesto ambíguo para o vazio, a rocha onde jaz estendido e imóvel o corpo de um inglês, e diz:

— Essa gente... —E assim rompe o silêncio. Se é que podemos chamar de silêncio o chiado ensurdecedor do vento atravessando os picos do Himalaia".

O escritor argentino Sebastián Martínez Daniell, autor de 'Dois sherpas'
O escritor argentino Sebastián Martínez Daniell, autor de 'Dois sherpas' - Arquivo pessoal

Quem faz esse relato não é um montanhista, nunca chegou perto de um alto pico, muito menos do Himalaia. Mas o escritor argentino Sebastián Martínez Daniell, 52, mergulhou fundo em tudo o que encontrou de informação sobre a mais alta montanha do planeta, o Everest, para montar uma narrativa que, acima de tudo, é um chamado para a civilização, a civilidade e a humanização daqueles que muitas vezes imaginamos estarem ao nosso redor só para nos servir e avalizar nossas próprias vitórias.

A história "Dois sherpas" contada por Daniell não é linear, intercala momentos de contemplação de dois personagens, identificados apenas como sherpa velho e sherpa jovem, que olham para o corpo caído do montanhista inglês sem decidirem se vão ou não tentar seu resgate.

"À minha narrativa era importante certo grau de anonimato dos personagens", contou Daniell ao blog. "Eles estão ali pelo que representam, não pelo que são, têm um papel dentro de um sistema de poder, um sistema econômico, mesmo que cada um tenha sua própria vida interior, seus sonhos e desejos", acrescenta.

A ausência de nomes têm a ver com a intenção de oferecer uma percepção de que "eles não são casos excepcionais, únicos, mas parte de um fenômeno que tem a ver com a exploração, o colonialismo, uma visão muito ocidental da montanha", explica Daniell. Ao não dar-lhes uma identidade, o autor também os desliga de qualquer cultura e permite que se trace um paralelismo válido tanto para o Everest, como para o Aconcágua, o monte Roraima, qualquer outro cume —ou desafio.

É justamente essa percepção que deu vida a "Dois sherpas", que inicialmente, conta Daniell, era uma história completamente diferente, do filho de um ornitólogo inglês que, para superar feitos do pai, resolvia escalar o Everest e, ele sim, despencava no meio da subida. "Quando imaginei essa cena, foi o momento em que resolvi abandonar a história original, imaginando os sherpas ali, olhando, eles que têm alto nível de especialização, mas são tratados pelos turistas, nunca verdadeiramente íntimos da montanha, como animais de carga", lembra Daniell.

Vários exemplos de desprezo são citados ao longo da narrativa, como quando John Hunt, barão de Llanfair e oficial do exército da coroa inglesa, foi encarregado de montar uma expedição e levar a bandeira britânica ao pico mais alto do mundo.

Em Katmandu, capital do Nepal, Hunt contratou um grupo de sherpas. À noite, os montanhistas britânicos se recolheram a seus quartos, e quando os sherpas perguntaram onde eles dormiriam, a resposta foi que deveriam dormir no chão, "como fazem na montanha". Em sinal de protesto, os sherpas urinaram na calçada em frente ao alojamento britânico ao amanhecer.

Foto dos membros da expedição organizada pelo britânico John Hunt, tirada em 28 de maio de 1953, cinco dias após a conquista do cume do Everest por Edmund Hillary e Tenzing Norgay - Robic Upadhayay/AFP

Hunt não conseguiu fincar a Union Jack, a bandeira britânica, no cume do Everest. A façanha de ser o primeiro a conquistar a montanha ficou a cargo do neozelandês Edmund Hillary e do sherpa nepalês Tenzing Norgay. Eles chegaram ao cume em 23 de maio de 1953. De volta a Londres, no dia 3 de julho daquele ano, Hillary foi condecorado Cavaleiro-Comendador da Ordem do Império Britânico, primeira de muitas honrarias que lhe seriam concedidas. A Norgay, que havia salvado a vida de Hillary a poucos metros do cume, e que por afinidade e conhecimento do ambiente tinha sido o verdadeiro estrategista da escalada, deram uma medalhinha com a efígie do rei George 6°, o gago. Talvez um tapinha nas costas, também, discreto, como recomenda a fleuma britânica.

Capa do livro, " DOIS SHERPAS " Sebastián Martinez Daniell - Divulgação

Ao intercalar a narrativa com esses e outros contrastes, reflexos de um colonialismo mofado, Daniell constrói uma obra ideal para quem pratica ou não o montanhismo. Porque nunca é demais lembrar que, na montanha como na vida, a maior vitória é partilhar as conquistas de cada dia com aqueles que nos ajudaram a viabilizá-las. E, não, o livro não é para a seção de auto-ajuda. Mas que tem uma boa dose de reflexões úteis, ah, tem. Para ler, pensar e repensar. E, de quebra, admirar o belo projeto gráfico desenvolvido por Luís Fernando Protásio.

Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com dois meses de assinatura digital grátis

DOIS SHERPAS

Preço R$ 89,00 (280 págs.)

Autoria Sebastián Martínez Daniell, Tradução Maurício Tamboni

Editora Pontoedita

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