Entretempos

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Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

Que corpo pode sangrar?

Ensaio Palavra-Imagem com Rafaela Kahvegian e Cecilia Vicuña

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Para este Ensaio convidei a psicóloga Rafaela Kahvegian para escrever sobre um tema tão urgente e permeado de tabus em nossa sociedade: a menstruação. Eu ainda não tinha as imagens claras para dar às mãos ao texto, mas elas vieram a partir da leitura das palavras da Rafa, que é pós-graduada em Psicanálise, Perinatalidade e Parentalidade pelo Instituto Gerar de Psicanálise. Assim chegou a poeta, artista, cineasta e ativista chilena Cecilia Vicuña, com sua obra "Quipu Menstrual". O trabalho artístico de Vicuña, atravessado pelo exílio e pelos traumas vividos no governo Pinochet, é sustentado por inquietações políticas, ecológicas e sociais, em importantes mostras e instituições pelo mundo.

A série Quipu Menstrual foi originalmente concebida como uma oração pelas geleiras destruídas pela mineração e, em paralelo, uma referência potente ao poder da menstruação e à vivacidade do corpo feminino como uma resistência à ganância, violência e intervenção do homem na natureza. Ela entrelaça várias sensibilidades no encontro dos fios que compõem os tecidos, que materializam algumas de suas obras mais conhecidas e que ressignifica em vários pontos o que é uma mulher de muita fibra. Ela oferece uma representação alternativa da menstruação, apresentando-a sob uma luz poderosa, quase celestial, em desafio à misoginia perpétua e à ideia de fraqueza frequentemente ligada às figuras femininas em uma sociedade patriarcal. As obras representam a exploração poética de Vicuña da menstruação como um fio metafórico que une o passado ao presente e conecta as mulheres à terra e ao cosmos.

Rafaela e Cecilia em um encontro desconhecido iluminado, necessário, feminino e reticente.

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obra da chilena Cecilia Vicuña - divulgação

"Eu me sujei". "Não posso ir". "Enrola um monte de papel". "Coloca pano". "Jornal serve". "Miolo de pão funciona". "Dói". "Cheira mal". "Fala baixo". "Você tem aquilo?". "É que eu estou naqueles dias". "Não dá para ir". "Vou faltar na aula". "Está de chico". "Já virou mocinha?". "Feche as pernas". "É nojento".

Com treze anos, na média - de quem? -, menstrua-se. Acontecimento esse que não pede licença. Mas, quem pode sangrar?

Do tempo nomeado puberdade e que acomete a todos os corpos, essa tal de adolescência - acontecimento que a psicanalista Renata Petri define como resposta subjetiva à puberdade - é singular a cada sujeito, plural em sua manifestação, diz ela.

Travessia única de cada menina, de cada mulher e de cada pessoa com útero. Mas que depende de vários fatores - dentre eles, a subjetividade construída na infância, os discursos produzidos na época e o contexto político, histórico-social e cultural.

Nem de longe comum a todas.

Menstruar afeta de modo definitivo e irrevogável o corpo, e tem efeitos que passam, necessariamente, por um reconhecimento social. "Virou mulher" é mais um dos imperativos que uma cultura cisheteronormativa produz sobre corpos femininos.

Parou de menstruar? Não é mais mulher.

Reconhecer-se mulher é corte desde o início. "Se preta, pobre e periférica (os três "p" alvos de extermínio da polícia) o choque é infinitamente maior e as consequências, talvez, letais", escreve a psicanalista Vera Iaconelli. Das 213 mil meninas que não têm banheiro em condição de uso na escola, 65% são negras.

Que corpo pode sangrar?

No Brasil, 713 mil meninas não têm banheiro ou chuveiro em casa.

4 milhões não têm acesso a itens mínimos de cuidados menstruais nas escolas.

Quase 90% das meninas passam entre 3 a 7 anos da vida escolar menstruando.

Mulheres entre os 5% mais pobres precisam trabalhar até 4 anos só para custear os absorventes que usarão ao longo da vida.

Retomemos.

"Eu me sujei". "Não posso ir". "Enrola um monte de papel". "Coloca pano". "Jornal, então". "Miolo de pão funciona". "Dói". "Cheira mal". "Fala baixo". "Você tem aquilo?". "É que eu estou naqueles dias". "Não dá para ir". "Vou faltar na aula". "Está de chico". "Já virou mocinha?". "Feche as pernas". "É nojento".

Fluídos vaginais impuros, nojentos e sujos. O show de horror dos noticiários. Por que é tão constrangedor falar sobre fluídos vaginais? Por que crianças não são respeitosamente informadas sobre o ciclo menstrual e o que atravessa o corpo na puberdade, para que possam criar saídas possíveis a esta experiência?

Aquilo que não pode ser dito torna-se invisível. Leia-se: desassistido. Sementes de sentimentos de vergonha, segredo e violência.

1 em cada 4 meninas já faltou a aula por não poder comprar absorventes.

1 em cada 4.

Da falta de acesso a absorventes e a condições básicas de saneamento em casa e na escola, a falta à aula, ao trabalho. A falta de higiene, saúde, dignidade.

Encontrar lugar de nomeação para uma experiência é poder reconhecê-la. Ao dar um nome, podemos ver e partilhar: racismo estrutural, feminicídio, dignidade menstrual. Criar palavras para descrever o que se vive é criar o acontecimento, diz Vera Iaconelli.

Então, que denunciemos.

Que corpo pode sangrar? - volto a perguntar, de dentro da minha casa, com banheiro e chuveiro, absorventes descartáveis, calcinha absorvente e coletor menstrual devidamente higienizados para uso no próximo ciclo.

Não, nem todo corpo pode sangrar.

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obra da artista chilena Cecilia Vicuña - divulgação
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obra da artista chilena cecilia vicuña - divulgação

……….

Referências:

● "Pobreza menstrual no Brasil - Desigualdades e violências de direitos" (2021), relatório realizado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/media/14456/file/dignidade-menstrual_relatorio-unicef-unfpa_maio2021.pdf

● "Livre para menstruar - Pobreza menstrual e a educação de meninas", Girl Up (2021). Disponível em:

file:///C:/Users/rafae/Downloads/LivreParaMenstruar-Pobreza-menstrual-e-a-educac%CC%A7a%CC%83o-de-meninas.pdf

● Teperman, Daniela; Garrafa, Thais; Iaconelli, Vera. Corpo. Autêntica Editora. Edição do Kindle.

● Teperman, Daniela; Garrafa, Thais; Iaconelli, Vera. Tempo. Autêntica Editora. Edição do Kindle.

● Iaconelli, Vera. "Quando nos descobrimos mulheres". Folha de São Paulo. 5.out.2020. Disponível em:

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2020/10/quando-nos-descobrimos-mulheres.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa

● Iaconelli, Vera. "Uma mulher não pode vacilar". Folha de São Paulo. 12.abr.2021. Disponível em:

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2021/04/uma-mulher-nao-pode-vacilar.shtml

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