Entretempos

Curadoria de obras e exposições daqui e dali, ensaios entre arte, literatura e afins

Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

Meio.Começo.Fim - Anna Maria Maiolino e Paulo Miyada

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Quando a Indesejada das gentes chegar

(Não sei se dura ou caroável),

Talvez eu tenha medo.

Talvez sorria, ou diga:

- Alô, iniludível!

O meu dia foi bom, pode a noite descer.

(A noite com seus sortilégios.)

Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,

A mesa posta,

Com cada coisa em seu lugar.

Manuel Bandeira (citado por Anna durante nosso papo)

foto de uma boca
In-out (Antropofagia), 1973/1974, Anna Maria Maiolino, exclusivo entretempos - coleção da artista

Anna existe há 80 anos com toda a potência que a existência exige. Ela é, está e percebe o mundo ao seu redor com extrema delicadeza, força e coragem. Mulher. Mu-lher. Faz diferença absoluta ser mulher em seu trabalho. Um corpo que habita. Um corpo que grita. Um corpo que se comunica com o fora e o dentro. Um corpo em carne-viva, que se desperta e é despertado. Acontece. Vive. Pulsa. Vibra. Se contorce. Cicatriza.

Anna e Paulo. Um diálogo que funciona, que se complementa, que se atravessa. Os olhos dele para o trabalho dela. A entrega dela para o perceber dele. Tanto é que a exposição é extremamente afinada em seu percurso não cronológico e sim espiralar, imaginando e propondo que os finais estavam impressos desde o princípio. Assim como o gozo feminino, espiralado, não tem começo nem fim, como define Anna. Horizontalizar obras de 2020 com obras de 1962 é muito potente para reforçar esse discurso de que tudo volta. Se reinventa, se complementa. Passado e presente que germinam incessantemente. "Geralmente essas exposições antológicas são muito severas, mas essa permitiu a possibilidade de riscos" afirma ela. O tempo em espiral se renova e o fato de ter obra de décadas atrás e de agora comprova a existência de uma verdade que pulsa; o público percebe que não é uma exposição engavetada. Ela é múltipla e resiste ao passado e aponta para um futuro renovado. Um presente que se renova.

argamassa de cimenta sobre mesa de metal
Sem título, da série Da Terra - Errâncias Poéticas, 2018, Anna Maria Maiolino, exclusivo entretempos, coleção da artista e Hauser & Wirth - Everton Ballardin

Para Paulo, a existência pessoal e subjetiva de Anna nunca deixou de transpirar essas múltiplas facetas de seu tempo. Sempre se guiou por suas necessidades vitais, reconstruindo territórios sensoriais, sociais e políticos. Eram tantas as coisas que se não fossem essas escolhas éticas e existenciais de tratar o trabalho como um mapeamento dos desejos, dos prazeres e das revoltas, a base estaria turva. A exposição começa do meio da vida, onde se registram os tempos de chegada e as amplitudes dos vários tipos de ondas sísmicas, parte para uma crítica macrossocial mais evidente e termina nas relações matéricas, deixando que os gestos aprendam com a liquidez dos múltiplos materiais que ela trabalha.

Por um fio, da série Fotopoemação, 1976, Anna Maria Maiolino, exclusivo entretempos
Por um fio, da série Fotopoemação, 1976, Anna Maria Maiolino, exclusivo entretempos - Regina Vater

"Me dá muita alegria perceber que tenho sido fiel a meus ensinamentos materno e paterno e poder me tornar um ser humano ético. Essa responsabilidade com o outro permeia a minha produção nessas 4 décadas de trabalho e Paulo deu ênfase a essa responsabilidade ética. Para mim, a arte é um meio muito certo da gente expressar essa responsabilidade. Isso sempre esteve latente em mim. Cheguei na Argentina, e estive em contato com as "mães de maio" e não aguentava mais ouvir sobre os desaparecidos. Era um luto. Doía no meu corpo. Fiquei muito tocada em como o amor daquelas mulheres fizeram parar a ditadura. Como o amor se manifestou revolucionário".

"Las locas, O amor se faz revolucionário", instalação inédita baseada em um projeto de 1992 que homenageava as corajosas mulheres que se organizaram para perseguir a verdade e a justiça depois de terem perdido seus filhos durante a ditadura militar argentina, é paralisante. Rostos de argila que te observam ao entrar na sala. Na época, não realizou a obra por completo, e finalmente, incentivada por Paulo, que curou seu trabalho, revelando o que se esconde na artista – como ela mesma define, terminou a instalação. "Quando você emerge em um trabalho com a alma, eu adoro, mas meu corpo de velha não dá mais" diz Maiolino.

"Até o luto pode ser comemorado e as instalações têm essa potência de choro coletivo. A arte é o que me dá mais sentido de viver. É onde o ser humano cumpre seu destino na sua maior capacidade."

"Anna, e a morte? E o fim para você?" Pergunto.

"A morte é minha amiga. que espero não ir embora. Quando estou cansada quero ir embora... agora me dei mais 10 anos. Tenho que viver até os 90. Venho de uma cultura mediterrânea - onde a morte é muito presente, principalmente no passado, como parte da vida. Eu quando criança, ia em vários velórios. Hoje não. Cadê a vida em si? A matéria se cansa. É um cansaço da matéria. Tem mais é que aceitar o cansaço dela. A argila vai sentir seu destino natural, desidrata e vira pó. "

Vida longa, Anna.

Bati um papo com os dois, pela segunda vez em um ano, uns dias antes de Anna completar 8 dácadas. Nas semanas seguintes, durante minha visita a exposição em um entardecer, encontrei com Anna deitada no chão no ensaio de uma performance no vão do Tomie Ohtake. Será assim que terminará essa temporada paulistana Maiolino, com a apresentação da performance inédita "Hoje é o amanhã, sem antes nem depois". Elaborada pela artista, a performance acontecerá neste domingo, 24 de julho, às 16hs.

Obrigada, Paulo e Anna, sempre um devaneio bonito, que instiga e me preenche. <3

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