Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
Manuel Bandeira (citado por Anna durante nosso papo)
Anna existe há 80 anos com toda a potência que a existência exige. Ela é, está e percebe o mundo ao seu redor com extrema delicadeza, força e coragem. Mulher. Mu-lher. Faz diferença absoluta ser mulher em seu trabalho. Um corpo que habita. Um corpo que grita. Um corpo que se comunica com o fora e o dentro. Um corpo em carne-viva, que se desperta e é despertado. Acontece. Vive. Pulsa. Vibra. Se contorce. Cicatriza.
Anna e Paulo. Um diálogo que funciona, que se complementa, que se atravessa. Os olhos dele para o trabalho dela. A entrega dela para o perceber dele. Tanto é que a exposição é extremamente afinada em seu percurso não cronológico e sim espiralar, imaginando e propondo que os finais estavam impressos desde o princípio. Assim como o gozo feminino, espiralado, não tem começo nem fim, como define Anna. Horizontalizar obras de 2020 com obras de 1962 é muito potente para reforçar esse discurso de que tudo volta. Se reinventa, se complementa. Passado e presente que germinam incessantemente. "Geralmente essas exposições antológicas são muito severas, mas essa permitiu a possibilidade de riscos" afirma ela. O tempo em espiral se renova e o fato de ter obra de décadas atrás e de agora comprova a existência de uma verdade que pulsa; o público percebe que não é uma exposição engavetada. Ela é múltipla e resiste ao passado e aponta para um futuro renovado. Um presente que se renova.
Para Paulo, a existência pessoal e subjetiva de Anna nunca deixou de transpirar essas múltiplas facetas de seu tempo. Sempre se guiou por suas necessidades vitais, reconstruindo territórios sensoriais, sociais e políticos. Eram tantas as coisas que se não fossem essas escolhas éticas e existenciais de tratar o trabalho como um mapeamento dos desejos, dos prazeres e das revoltas, a base estaria turva. A exposição começa do meio da vida, onde se registram os tempos de chegada e as amplitudes dos vários tipos de ondas sísmicas, parte para uma crítica macrossocial mais evidente e termina nas relações matéricas, deixando que os gestos aprendam com a liquidez dos múltiplos materiais que ela trabalha.
"Me dá muita alegria perceber que tenho sido fiel a meus ensinamentos materno e paterno e poder me tornar um ser humano ético. Essa responsabilidade com o outro permeia a minha produção nessas 4 décadas de trabalho e Paulo deu ênfase a essa responsabilidade ética. Para mim, a arte é um meio muito certo da gente expressar essa responsabilidade. Isso sempre esteve latente em mim. Cheguei na Argentina, e estive em contato com as "mães de maio" e não aguentava mais ouvir sobre os desaparecidos. Era um luto. Doía no meu corpo. Fiquei muito tocada em como o amor daquelas mulheres fizeram parar a ditadura. Como o amor se manifestou revolucionário".
"Las locas, O amor se faz revolucionário", instalação inédita baseada em um projeto de 1992 que homenageava as corajosas mulheres que se organizaram para perseguir a verdade e a justiça depois de terem perdido seus filhos durante a ditadura militar argentina, é paralisante. Rostos de argila que te observam ao entrar na sala. Na época, não realizou a obra por completo, e finalmente, incentivada por Paulo, que curou seu trabalho, revelando o que se esconde na artista – como ela mesma define, terminou a instalação. "Quando você emerge em um trabalho com a alma, eu adoro, mas meu corpo de velha não dá mais" diz Maiolino.
"Até o luto pode ser comemorado e as instalações têm essa potência de choro coletivo. A arte é o que me dá mais sentido de viver. É onde o ser humano cumpre seu destino na sua maior capacidade."
"Anna, e a morte? E o fim para você?" Pergunto.
"A morte é minha amiga. que espero não ir embora. Quando estou cansada quero ir embora... agora me dei mais 10 anos. Tenho que viver até os 90. Venho de uma cultura mediterrânea - onde a morte é muito presente, principalmente no passado, como parte da vida. Eu quando criança, ia em vários velórios. Hoje não. Cadê a vida em si? A matéria se cansa. É um cansaço da matéria. Tem mais é que aceitar o cansaço dela. A argila vai sentir seu destino natural, desidrata e vira pó. "
Vida longa, Anna.
Bati um papo com os dois, pela segunda vez em um ano, uns dias antes de Anna completar 8 dácadas. Nas semanas seguintes, durante minha visita a exposição em um entardecer, encontrei com Anna deitada no chão no ensaio de uma performance no vão do Tomie Ohtake. Será assim que terminará essa temporada paulistana Maiolino, com a apresentação da performance inédita "Hoje é o amanhã, sem antes nem depois". Elaborada pela artista, a performance acontecerá neste domingo, 24 de julho, às 16hs.
Obrigada, Paulo e Anna, sempre um devaneio bonito, que instiga e me preenche. <3
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