Cicatriz - dicionário Michaelis
- Marca, sinal ou vestígio deixado por lesões ou ferimentos, em decorrência da formação de tecido fibroso que substitui os tecidos normais comprometidos.
- Sinal deixado em certos órgãos, devido à formação de novo tecido, pela queda ou corte de partes vegetais; escara.
- Sinal ou vestígio de estrago ou destruição (guerra, calamidades naturais etc.).
- Impressão ou sentimento imorredouro deixado por uma ofensa, desgraça, um choque (moral, espiritual, psicológico etc.).
"Preciso desarmar a animosidade dos fragmentos de mundos entre si e em si mesmos para levar em conta somente sua alquimia futura. E para arrematar essa operação de corpo e espírito, é preciso desde já voltar a fechar as fronteiras imunológicas, costurar novamente as aberturas, reabsorvê-las, isto é, decidir encerrar. É preciso cicatrizar."
Talvez a palavra que mais busque na obra dos outros e na minha é cicatriz. Me persegue. Procuro cicatrizes em absolutamente todo o meu entorno; de diferentes formas, cores, texturas, profundidades, tamanhos, país de origem, guerras, tombos e paisagens. Com dor ou sem dor. Toda cicatriz dói? Doeu? Algumas fecham por completo, outras insistem em abrir vez ou outra, nos lembrando ainda mais que existem. Mais como uma ferida escancarada com uma casquinha que nunca sai. Têm as cicatrizes que rasgam, que expõem pedaços obscuros do que foi. Atravessam as múltiplas camadas de pele e nos deixam em carne-viva. Mesmo em forma de cicatriz continuam jorrando história. Continuam escancarando um passado. Porque afinal é isso, né?! Uma cicatriz é sempre um passado. uma cicatriz é sempre o que já foi. Mesmo que ainda pulse internamente, já foi. Carregamos junto da gente. A paisagem carrega junto dela. Cada uma tem seu começo, meio e fim. De tantas idas a Armênia e agora passando algumas temporadas no Ceará, cicatrizes territoriais não faltam aos meus olhos. Lá no Cáucaso, as montanhas estão repletas; os papéis de parede descascados provocam novas narrativas, a pintura gasta e sobreposta do tempo soviético sugere uma história; a guerra arranca pedaços. Aqui, no nordeste, elas pulsam das falésias. Ontem eram de um jeito, amanhã ninguém sabe como serão com o avanço do mar.
Um vestígio de pele na própria pele. Narrativas sobre um corpo. Rasgos que se multiplicam, se transformam, se proliferam e voltam a rasgar. Uma cicatriz guarda resquícios de um ontem. Memórias cravadas na pele. na casa. na paisagem. Morte. Fim. Luto. Uma nova camada se forma.
"porque não quero ser um território invadido. Quero fechar minhas fronteiras, expulsar os intrusos, resistir a invasão. Mas talvez eu já esteja sitiada. É sempre a mesma coisa. Diante de pensamentos assim, eu afundo: sei que, para fechar minhas fronteiras, será preciso antes poder reconstruí-las"
Terminei há uma semana de ler o incrível livro "Escute as Feras" da antropóloga francesa Nastassja Martin e que dor. que visceral. que bonito. que profundo. que potência. quantas marcas. Talvez este post não tenha nem pé nem cabeça para alguns de vocês, mas assim que terminei a leitura senti que precisava colocar em imagens aquilo tudo - como se já não bastasse ter riscado quase o livro inteiro em dois dias. Queria uma coleção toda dela para não acabar mais. Tudo o que ela diz, claro que por situações diferentes, tempestuaram algumas camadas aqui dentro. O que fica da gente depois de uma história? O que marca na gente o tempo de um passado? Que cicatrizes bancamos? Quais cicatrizes compartilhamos com o outro? Não tenho pretensão de responder nada disso. São mais devaneios para poder agrupar em um só lugar algumas imagens da minha coleção que aquietem um pouco o que senti ao terminar as palavras de Martin. E porque cicatrizes são bonitas e ponto.
"meu corpo em forma de mundo aberto onde múltiplos seres se encontram, meu corpo que se recupera com eles, sem eles; meu corpo é uma revolução."
**todos os trechos são do livro "Escute as feras" de Nasstaja Martin
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