Entretempos

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Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

A árvore, a cenoura e a foto

Ensaio Palavra-Imagem com Thiago Camelo

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Depois de ficar com um rasgo no corpo ao ler "Dia Um" (2022, Companhia das Letras), novo livro do escritor Thiago Camelo, decidi convidá-lo, quase de imediato, para este Ensaio. Porque, afinal, temas tristes e que doem é comigo mesma. Também autor de "Verão em Botafogo" (2010, 7Letras, poesia), "A ilha é ela mesma" (2015, Moça Editora, poesia), "Descalço nos trópicos sobre pedras portuguesas" (2017, Editora Nós, poesia) e "Silêncio", livro-poema pela coleção Puxadinho (2016, PipocaPress) e um apreciador da imagem, me sugeriu as fotografias para suas palavras. Palavras estas que fazem o leitor viajar, partindo da estação de trem de Bergen, na Noruega, no auge do inverno. Existe uma suspensão temporal que respeita o tempo real de um trajeto na paisagem. É bonito. Assim como seu livro. Para tempos tão acelerados, poder dilatar os acontecimentos, como a TV norueguesa fez quando decidiu colocar no ar esta viagem de sete horas e dezesseis minutos de Bergen a Oslo, parece fundamental.

frames do plano-sequência de uma viagem de trem de Bergen a Oslo, feito pela tv norueguesa NRK2, exclusivo entretempos
frames do plano-sequência de uma viagem de trem de Bergen a Oslo, feito pela tv norueguesa NRK2, exclusivo entretempos - reprodução

A árvore, a cenoura e a foto

Em 2009, profissionais que cuidavam do NRK2, canal mais experimental da TV pública norueguesa NRK, produziram um documentário sobre o centenário da linha de trem que liga Bergen a Oslo (as duas maiores cidades do país). Tudo foi filmado sem cortes, ou seja, num plano-sequência cujo único ponto de vista era o do condutor do trem.

As sete horas e dezesseis minutos da exuberante viagem foram ao ar. O sucesso foi prodigioso e inesperado. Um milhão e 200 mil pessoas passaram pelo NRK2, 15% dos televisores do país ligados – a Noruega é um país pequeno, de pouco mais de 5 milhões de habitantes.

Essa transmissão é até hoje a mais icônica do que ficou conhecido a partir dali como slow TV. Ela está disponível na íntegra no YouTube, assim como a maior parte das produções-lentas da NRK, entre as quais: 24 horas da pesca do salmão, uma lareira ardendo durante uma noite inteira, pessoas tricotando e conversando sobre agulhas e pontos de tricô, entre outros eventos demorados.

Existe aqui um diálogo artístico com os filmes experimentais de Andy Warhol, que também filmou por horas pessoas e objetos (Sleep e Empire, por exemplo, são essencialmente slow TV), ou de James Benning, com seus quadros autônomos de paisagens ou de pessoas fumando (Rhur e Twenty Cigarettes), ou até mesmo com o cinema de enfrentamento do tempo – enfrentamento do corte – de cineastas como Yasujiro Ozu, Chantal Akerman, Hou Hsiao-hsien, Tsai Ming-liang, Aleksandr Sokurov.

A primeira vez que ouvi falar da slow TV foi numa coluna do tipo "Mundo Bizarro", em que se apontava a estranheza da experiência e, nas entrelinhas, se dizia que só um país como a Noruega poderia aderir a esse tipo de transmissão.

A primeira aparição da busca "slow TV" no YouTube já traz a viagem Bergen-Oslo.

Não precisei de muito para me sentir instigado.

A viagem

Enxergo pelo ponto de vista do condutor de um trem, sem, no entanto, nenhum item do trem à mostra, nem mesmo a sua parte frontal, o bico. O que se vê na partida: a estação de Bergen, o trilho, três mulheres e um homem conversando, um pai carregando o filho nos ombros; no horizonte, o sol diz mais ou menos sete da manhã e estoura a imagem; uma montanha ao fundo delimita o caminho.

Entro num túnel escuro de cinco quilômetros (o maior da região, li depois) – fico quase dez minutos num breu com raios de luz nas laterais, como uma viagem cósmica, embalado por cochichos ininteligíveis e ruídos metálicos; uma suspensão espacial muito peculiar, ainda mais diante da televisão, meio de comunicação que, em teoria, ruma em direção à obsolescência.

Saindo do túnel, explode um clarão e depois neve, verde, céu, estrada, animais, sol, neve, neve, neve, neve, túnel, neve, túnel, neve, túnel, neve, primeira, segunda, terceira estação... Nada, nenhum grande fato ocorre durante a viagem. No fundo, para mim, quase não se trata de fatos. Tem mais a ver com sensação: com a pulsão da atenção e com o relaxamento da desatenção; com o olhar vigilante e com o olhar de viés; e até com eventuais cochilos, entremeados por um despertar repentino, um aviso do condutor de que chegamos à próxima estação.

A exuberância da paisagem faz parte do jogo hipnótico, ainda mais para alguém naturalmente tropical como eu – é tudo muito diferente, e lidar com tanta alteridade assim atrai. Contudo, e aqui entra a fotografia, a viagem acontece de fato em momentos como quando o trem para na estação de Finse, um pequenino vilarejo montanhoso: estamos com duas horas e trinta minutos de viagem. Do comboio, parado há mais ou menos cinco minutos, assistimos mais a uma foto do que a uma imagem em movimento – tudo está congelado como a neve. Podemos descrever, tal qual Agnès Varda em Um minuto para uma imagem, a paisagem; não fosse a luz do sol estalando e dançando no lago à direita, seria uma foto perfeita: a neve óbvia. Cabos de energia. Um objeto metálico e indistinguível à esquerda. O trilho salpicado de branco. Torres de energia. Pequenas casas norueguesas numa colina. Pegadas que podem ser de bicho ou de gente ao lado do objeto metálico. Uma casa maior, talvez a estação, à direita. O lago cintilante à direita. Um túnel no primeiro horizonte. Céu azul com nuvens frescas, secas e finas no horizonte maior.

Essa é a foto.

Ela remete a certa filosofia ocidental kantiana, que entende que, até que haja a mente, ou seja, a subjetividade humana, as coisas não existem de fato – como naquela alegoria do som-sem-som da árvore caindo na floresta vazia, ou como na cenoura que, ainda não tendo sido devorada, não pode ter realmente gosto.

Será?

Num instante mágico, contudo, um homem passa ao fundo esquiando de modo muito firme e sereno. Pés esticados após pés esticados, ele cruza toda a direita do plano, até sumir. O trem congela de novo na foto. E então parte, deixando a impressão de que o gesto do homem movimentou o tempo, atravessou o tempo – pulsou, reagiu. Algo aconteceu; os frames reverberaram.

Se uma árvore cai numa floresta abandonada o barulho da árvore caindo existe?

Se uma cenoura nunca é provada o sabor da cenoura existe?

Na foto-cinema da slow TV, no tempo dilatado até o limite do quadro fixo, quem agiu primeiro: foi o homem esquiando que coagiu a filosofia ou foi a filosofia que se provou por meio do homem esquiando?

frames do plano-sequência de uma viagem de trem de Bergen a Oslo, feito pela tv norueguesa NRK2, exclusivo entretempos
frames do plano-sequência de uma viagem de trem de Bergen a Oslo, feito pela tv norueguesa NRK2, exclusivo entretempos - reprodução
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Mais sobre a slow TV:

Assista à viagem de trem Bergen-Oslo:

https://www.youtube.com/watch?v=xisVS_DKpJg&ab_channel=1slowtv

Assista ao curta-metragem That Damned Cow - Just What is Norwegian Slow TV?, do inglês Tim Prevett:

Sobre o questionamento ao pensamento kantiano:

https://hermanovianna.wordpress.com/2010/12/23/metafisica/

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