Entretempos

Curadoria de obras e exposições daqui e dali, ensaios entre arte, literatura e afins

Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

Imagens infinitas - Ensaio Palavra-Imagem

com Josiane Orvatich e Paula Prats

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Imagem do projeto "ÍS"de Paula Prats, exclusivo entretempos
Imagem do projeto "ÍS"de Paula Prats, exclusivo entretempos - reprodução

A partir deste Domingo, uma vez por mês, o Ensaio terá uma parceria com o Clube do Livro de Literatura e Psicanálise, coordenado pela psicanalista e crítica literária Fabiane Secches. Uma atividade híbrida (curso livre + grupo de discussão) destinada a incentivar e a aprofundar leituras de obras literárias relevantes para o nosso tempo à luz de alguns conceitos da psicanálise.

A cada mês, o clube tem a participação de uma pessoa convidada pela coordenadora, sempre com sólida experiência em sua área, que fica responsável pela aula teórica e conduz o encontro on-line em que o grupo conversa sobre suas impressões a respeito da obra do mês. O livro lido em janeiro de 2023 foi o romance brasileiro "Uma tristeza infinita" (editora Companhia das Letras), de Antônio Xerxenesky, e a professora convidada do clube foi a psicanalista Josiane Orvatich, que tem formação tanto em Psicologia como em Filosofia e, além de atender e dar aulas, também escreve e pesquisa — atualmente, Josiane é doutoranda em Psicanálise, pesquisando o mito de Antígona. Com seu texto exclusivo para o blog, tentei achar uma imagem que correspondesse a seus devaneios. Escolhi duas fotografias da espanhola Paula Prats, que registrou lindamente o auge do inverno na Islândia.

Imagem do projeto "ÍS"de Paula Prats, exclusivo entretempos
Imagem do projeto "ÍS"de Paula Prats, exclusivo entretempos - reprodução

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Imagens infinitas

Josiane Orvatich

O romance "Uma tristeza infinita", de Antônio Xerxenesky, ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura e um dos finalistas do Prêmio Jabuti em 2022, tem como cenário o pós-guerra europeu, mais precisamente a Suíça dos anos 1950, onde acompanhamos Nicolas, um psiquiatra francês, e sua esposa Anna. Ambos estão desbravando seus mundos internos, entrelaçados a uma sociedade ressentida, muito ferida pela experiência do Nazismo e da Segunda Guerra Mundial, lidando com marcas que se fizeram inscritas em seus corpos.

Entre os dilemas do médico em relação à tristeza de seus pacientes e a sua própria, os dilemas de Anna quanto ao lugar da mulher no mercado de trabalho e na vida política, encontramos personagens com duras impressões corporais deixadas pela guerra — a melancolia que abate o indivíduo sobre a cama, os pensamentos de morte, a força física debilitada, os sonhos traumáticos que invadem a noite e as infinitas imagens que Antônio Xerxenesky cria e descreve, contornando o tumulto da experiência e extraindo dela sentidos para a vida, como afirma Umberto Eco quanto trata da função dos mitos e narrativas.

No final do livro, Antônio Xerxenesky relata o impacto da paisagem suíça em sua imaginação, quando viajou para o vilarejo de Montricher para uma residência literária onde, a princípio, pretendia escrever sobre a cidade de São Paulo. Desse encontro inesperado com a região do Cantão de Vaud e seus efeitos no escritor nasce o personagem Nicolas, também impressionado pela floresta e suas "árvores altas e verdejantes, o sol amarelo de fim de tarde filtrado pela fileira de troncos de árvores lançando sombras longas sobre o terreno, e a névoa que pairava ali" e "o branco da neve no topo das montanhas dando espaço à gradação que ia de um laranja intenso a um vermelho sangue coagulado".

Duas cenas tratam da sobreposição entre natureza e cultura, categorias que muitas vezes são tratadas de forma dicotômica, quando o autor nos apresenta, em imagens com qualidade cinematográficas e cheias de potencial sensorial, envolvendo a travessia do médico por um bosque. Na primeira, Nicolas, recém-chegado, é apresentado como um "homem indefeso com as mãos no bolso de um paletó de lã", amedrontado pelo espaço natural, o som dos pássaros, os ruídos de animais pisando nas folhas, até que, na segunda passagem, mais implicado em suas questões íntimas e familiarizado com o espaço, seu pé afunda na neve e se enrosca nos chifres de um cervo morto.

Essa imagem simbólica nos sugere um afastamento de Nicolas da vida mais urbana, agora se aproximando do encontro ou da integração entre ser humano e natureza, corpo e mente, sociedade e biologia, encontros que o livro nos convida a considerar e refletir. O diálogo do livro, em que se discute a influência da escuridão e do vento de inverno nos humores da população, é um exemplo de como a disparidade entre civilização e meio ambiente está sendo problematizada.

Para acompanharmos o mergulho de Nicolas em seu passado, além de um narrador observador que nos permite participar de perto dos pensamentos do personagem, temos a estrutura formal do livro, dividido em capítulos numerados, com apenas duas exceções em que estão sem numeração e acompanhados de títulos — "Uma ansiedade antiga" e "Uma tristeza mais antiga" — quando o personagem relembra acontecimentos de sua vida que não entram na contagem, como se fossem situações impressas na psique de modo atemporal, e que se repetem, de tempos em tempos, no presente, como fantasmas que ainda precisam ser enfrentados e compreendidos.

A personagem Anna permanece misteriosa, já que pouco sabemos sobre ela, mas duas de suas opiniões geram forte impacto em Nicolas, levando-o ao movimento espiralado da investigação de si mesmo, e nos lembrando da afirmação de Sigmund Freud — bastante citado no livro — de que romances costumam ser narrativas intimistas. Uma das reflexões de Anna está justamente no seu diário, lido às escondidas pelo marido. Esse diário se destaca por seu caráter semelhante aos diários de escritoras como Susan Sontag e Virginia Woolf, em que não registraram apenas emoções, sentimentos ou anotações diárias, mas também pensamentos e ideias abstratas, reflexões sociais, estéticas e críticas sobre o mundo e sobre a cultura.

Uma última consideração sobre esse livro tão complexo e bonito é o diálogo entre o casal, em que se discute o sentido da vida. Nicolas, por um lado, se sente triste por não encontrar resposta para essa pergunta, ao que Anna rebate com a beleza do enigma: "existe graça no mistério". Mais uma vez podemos pensar em Freud, mais especificamente em seu texto "A transitoriedade", em que ele tece um elogio ao efêmero, ao encanto do instante e dos pequenos detalhes que compõem a raridade da existência.

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