"Defender o território-terra e não defender o território-corpo das mulheres é uma incoerência política. Se você se indigna contra agrotóxicos, contra os transgênicos, contra a mineração etc. e não se indigna quando uma mulher é violentada, rompe-se a rede de construção de um novo mundo, rompe-se a rede da vida." Lorena Cabnal, guatemalteca e feminista comunitária
Neste sábado abre "Meu corpo: território de disputa", exposição com curadoria de Galciani Neves, na Galeria Nara Roesler. Atravessada por questões ainda sem respostas e extremamente urgentes, Gal escolheu todas as artistas presentes na mostra, pensando na diversidade e na pluralidade delas e no conjunto diverso de estratégias poéticas sobre ser e habitar o corpo-mulher. Artistas que encaram esse cenário a partir da crítica, da fabulação, da autoafirmação e do reconhecimento de ser mulher no Brasil.
Batemos um papo na última segunda feira (6 de fevereiro) e me contou que seu processo de curadoria começou com o título, com o campo semântico, mais precisamente. Em qual composição imagética seria eficiente para traduzir a ideia de corpo de mulher? "Eu sabia que a palavra território e cartografia derivam de um vocabulário militar. O nosso território precisa se proteger do inimigo. Somos corpo-escudo, corpo-flama."
"Como caracterizar a natureza desses corpos de mulher?" ela se pergunta. E talvez nós mulheres, façamos a mesma pergunta, desde sempre, em diferentes circunstâncias de nossas vidas. "O Estado é quem faz a decisão de um corpo de mulher. Apenas no ano passado, por exemplo, foi votada a lei que não precisa mais que o cônjuge aprove a laqueadura de uma mulher. Isso é uma conquista ou é um passo tardio e lento na construção de uma identidade de gênero, Cassiana?"
Esse corpo-mulher tanto precisa estar apto a defesa, apto ao combate, apto a auto resiliência e a auto regeneração. "Somos um território solitário e possível de ser invadido a qualquer momento." Falar sobre violência contra a mulher ainda é um tema que gera infinitos desdobramentos e mesmo a Lei Maria da Penha, ainda tem um campo muito restrito e não abrange todas as especificidades das múltiplas mulheres do nosso país. "O que é a violência contra a mulher? Entramos em um processo de um corpo aliado a um território e a violência é multiplicada."
Para a exposição, as 27 artistas de diferentes gerações, linguagens e militância adentraram em um processo de potências fabulosas sobre como expor as estruturas todas dessas questões. É claro que falar de corpo de mulher ainda é um abismo e as diferenças são enormes. A abordagem do tema Feminicídio (todo homicídio praticado contra a mulher por razões da condição do gênero feminino e em decorrência da violência doméstica e familiar, ou por menosprezo ou discriminação à condição de mulher ) é delicada e necessária. Quando uma mulher está em defesa própria, ainda vem o estigma da mulher. Ainda precisar falar sobre o óbvio e sobre as definições que definem esta violência em um pensamento totalmente racional. "E a arte atua absolutamente como atividade social, como militância, como ativismo. Um processo que esta totalmente embrenhado nessa pauta."
A exposição se divide em 3 eixos: "A liberdade também é um combate" - trabalhos com mais denúncias; "Fabular uma anatomia experiencial" - o que pode a potência do corpo de uma mulher, um corpo multi tarefa, um corpo que vive a auto cobrança em trabalhos onde o corpo em si está muito em evidência; "Corpo-floresta em desbunde" - para perceber o contorno do corpo da mulher não como limite, mas que é capaz de se reapropriar de si mesmo, de se reflorestar... A felicidade, o gozo, o desejo também como uma forma de resistência, de luta.
"Ainda hoje, em 2023, tem um problema que é muito incômodo esse tema. Muitas pessoas acham que as coisas estão resolvidas e não, estamos lutando pelo óbvio; e não, é urgente. Não debatemos o suficiente e não chegamos em um patamar de equidade de gêneros."
Para isso é preciso expor, mostrar, escancarar, provocar, fazer ver. O corpo de uma mulher não é só individual, ele é também um corpo coletivo, um corpo político que constrói com o outro um reconhecimento. É preciso constituir um espaço coletivamente onde a liberdade de ser mulher em toda e qualquer instância seja possível. Ser mulher que se metamorfoseia quando e como quiser. "A gente precisa ter proteção do estado e social. E precisamos disso garantido. Ainda não chegamos em um lugar que precisamos e queremos chegar. Vai demorar muito tempo para chegar em uma atuação equilibrada. A mudança é estrutural, de ponta a ponta. Já nascemos na defasagem e agora, depois de 4 anos, estamos saindo de um momento de trevas para a mulher, com resquícios latentes e presentes no hoje. A cada 7 horas uma mulher é morta no Brasil. Porque sim, há diferenças gritantes entre uma mulher e um homem na rua."
Com essa coletiva, pretende tornar o tema tratável, alavancar o debate. "Se minimamente as pessoas deixarem a galeria pensando sobre isso, já chegamos em um lugar eficiente. Entender que isso é urgente, que é importante, que é pedagógico no melhor dos sentidos. feminismo é pra todes."
E você acha que toda mulher faz e precisa fazer um trabalho militante? pergunto a Gal.
"Não existe um trabalho de uma mulher que não seja um ato político. Quando pensamos o trabalho artístico como uma constituição de um sujeito político, a marca de gênero está aí. "
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