Entretempos

Curadoria de obras e exposições daqui e dali, ensaios entre arte, literatura e afins

Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

O Dragão das Profundezas - Ensaio Palavra-Imagem

com Ana Miranda e Chico da Silva

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Obra do artista cearense Chico da Silva, exclusivo entretempos
Obra do artista cearense Chico da Silva, exclusivo entretempos - reprodução

Neste Ensaio trago dois cearenses: Na palavra, a escritora Ana Miranda; na imagem, Chico da Silva. Conheci Ana nas falésias do litoral leste do Ceará e adorei as histórias que ouvi sobre sua vida e pedi um texto para o blog; alguns dias depois ela me enviou um sobre o grande Chico da Silva, publicado em 2010 no Jornal "O Povo". Ficou aqui na gavetinha de coisas bonitas e quando a primeira grande mostra de Chico na Pinacoteca começou na Pinacoteca, pensei ser o momento perfeito para a publicação. Chico da Silva (região do Alto Tejo, Acre, 1910 ou 1922/23 – Fortaleza, Ceará, 1985) foi um dos principais artistas sem treino artístico do Brasil na segunda metade do século XX. Seus trabalhos consistem em composições figurativas fabulares que apresentam seres mitológicos, animais fantásticos e personagens preenchidos por pontilhismo e fundos amplamente trabalhados. Fundou o Ateliê do Pirambu, e participou de importantes mostras, como a Bienal de São Paulo em 1967, e teve três trabalhos agraciados com menção honrosa na Bienal de Veneza, em 1966.

Obra do artista cearense Chico da Silva, exclusivo entretempos
Obra do artista cearense Chico da Silva, exclusivo entretempos - reprodução
Obra do artista cearense Chico da Silva, exclusivo entretempos
Obra do artista cearense Chico da Silva, exclusivo entretempos - reprodução

Chico da Silva, o Dragão das Profundezas

Sempre fui fascinada pelas pinturas de Chico da Silva. São dramáticas as formas dos animais, inesperadas suas projeções no espaço, belíssimos os obsessivos e quase irracionais ornamentos. Essas pinturas me fazem sonhar e me tocam a sensibilidade, seu profundo mistério me magnetiza. De onde vêm esses seres?

Só quando me mudei para o Ceará fiquei conhecendo melhor esse artista, pois jamais encontrara um livro sobre sua obra. Mas, um dia, revirando um acervo de livros usados, lá estava Chico da Silva, do delírio ao dilúvio, de Roberto Galvão, uma edição singela, com um texto sobre o percurso desse grande artista. É uma biografia sofrida e milagrosa. Ele nasceu no Acre, no meio da floresta amazônica, região do Alto Tejo. O Acre era quase uma extensão do Ceará, devido às intensas migrações de trabalhadores cearenses para a extração da borracha. A mãe de Chico da Silva, cearense, casou-se com um caboclo peruano, talvez descendente dos índios Kampa. Ali é quase fronteira com o Peru. Chico veio menino para o Ceará, indo morar em Quixadá, depois em Guaramiranga.

Decerto está na infância a origem de seus seres imaginários e de sua delicadeza estética. Ele declarou que fora educado por índios e por missionários. A convivência com uma floresta amazônica repleta de animais deslumbrantes, cores variadas, detalhes infinitos, o dia a dia com indígenas e suas artes plumárias, pinturas corporais, seus artesanatos entrançados e minuciosos, com a mitologia e a cosmologia de povos silvestres, suas lendas e mitos; depois, a convivência com áridas paisagens de caatinga, repletas de cactos, espinhos, formas sinuosas, e superstições; em seguida a experiência de Guaramiranga, entre matas quase tropicais e ciliares, as orquídeas e bromélias de formas fantásticas e sugestivas; essa combinação de experiências visuais e sensoriais da natureza com a sua sensibilidade formal e extremada imaginação, a contemplação de paisagens de uma pureza atemporal, e mais os sentimentos angustiosos de orfandade e pobreza, criaram seus dragões.

Já morando na bucólica aldeia de Pirambu, entre mares e morros de areia, o rapazinho talvez se sentisse solitário, desamparado. Morto o seu pai, ele trabalhava consertando sapatos, fogões, sombrinhas, ou fabricando fogareiros de lata. Não sabia ler nem escrever. Como um gesto desesperado de expressão, passou a rabiscar nas humildes paredes de taipa das casas dos pescadores, usando simplesmente carvão ou pedaços de tijolo, fragmentos de barro, frutas, delineando em murais seus seres imaginários. Os moradores chamavam-no de "o indiozinho débil mental", palavras que demonstram certo carinho, mas uma cruel incompreensão.

Um dia passou por ali um artista suíço, Jean Pierre Chabloz, e percebeu o extraordinário talento contido naqueles grafites rústicos. Deu a Chico da Silva um maço de cartolinas, tinta nanquim, guache, pastéis, lápis, penas e pincéis. Semanas depois, Chico apresentou-lhe os primeiros trabalhos. Assim começou a florescer a sua arte "saturada de inesquecíveis visões amazônicas", mas também cearenses, pois vejo em sua obra laços profundos com os pontilhados coloridos do artesanato em barro, com os ornamentos sinuosos das vestes dos vaqueiros, ou com os trabalhos matemáticos das rendeiras.

Chabloz comprava as pinturas e guiava-o sempre em direção aos sonhos. Quando Chico já produzira um bom número de obras, Chabloz escreveu uma resenha que foi publicada na revista francesa de maior prestígio na época, Cahiers d’Art. Chico da Silva tornou-se um dos maiores artistas ingênuos do mundo, com obras em coleções sofisticadas. Na Bienal de Veneza recebeu uma menção honrosa, inédita para a arte brasileira. Seus quadros eram desejados e disputados. Criou uma oficina em Pirambu, onde discípulos desenhavam sob seu estilo, e ele assinava as obras. Chico não tinha a visão enciumada de autoria, e não era mais apenas um artista, mas um estilo. O próprio Chabloz percebeu a natureza ampla dessa obra e destacou sua vocação para a arte aplicada, como em tapeçarias, rótulos, cerâmica, vidros, panos, azulejos com as figuras de Chico.

Parece serem três as geografias dos quadros de Chico. A primeira seria a região de sua infância amazônica, em pinturas que dão a sensação de umidade, sombrias e delimitadas por linhas curvas, contínuas, que poderia ser representada pelo "Dragão do lago", um réptil frio e sumarento. A segunda região seria a das pinturas de cenário espinhento e seco, com calangos, aves magras, galos e cobras; região que ele representa em "Dragão do mato", uma assimilação perfeita do horizonte de caatinga crestada, espinhos, ramos secos, madres de riachos craqueladas e tessituras ásperas, assim como das praias de areias alvas e cercadas por dunas estéreis. A terceira geografia seria o mundo interior, composto de quimeras, ciências ocultas, astronomia, cenário de um vazio infinito no qual parecem flutuar os seres mais delirantes, como a aranha gigantesca vista por um menino deitado em sua rede, abaixo dos olhos desse opressivo animal prestes a atacar. Mas representado, principalmente, pelo "Dragão das profundezas", quiçá o mais belo dos seus seres, o mais fantasiosamente colorido, dotado de uma universalidade cósmica, tocando uma cultura pré-histórica, realizando a apreensão de reinos ocultos na mente humana. O dragão que o habita é uma figura constante na mitologia popular cearense, usada como símbolo de força e intrepidez, como no caso do pescador que foi herói na abolição da escravatura local, chamado de Dragão do Mar.

Os animais míticos de Chico da Silva dão-nos acesso ao mundo dos seus delírios, que não povoam apenas os dramáticos seres, mas também as superfícies ornamentadas de maneira preciosa, obsessiva e irracional. Além de sugerir essa vexação quase louca, suas pinturas indicam uma solidão imensa, onde não há seres humanos a não ser em pedaços: a solidão das florestas e dos sertões isolados, a solidão do ser que não se compreende e não se sente compreendido. E dentro dessa solidão o artista parece travar monólogos tão herméticos que tornam suas mensagens indecifráveis. Fico apenas muda e absorta diante de seus quadros, sem nenhuma clareza de significados. Mas aprisionada pela estranha beleza.

É impressionante pensar no surgimento de um gênio artístico dentro das condições menos propícias que se possa imaginar. Chico provavelmente jamais contemplara uma obra de arte a não ser as pinturas corporais indígenas, ou as imagens naturalistas que a paisagem lhe proporcionava. No entanto, havia um ímpeto dentro de si que o levava a rabiscar nas paredes das casas em um lugar de exílio. Era a sua carta escrita ao mundo.

Publicada no jornal O Povo, em 01 de novembro de 2010

www.anamirandaliteratura.com.br

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