Frederico Vasconcelos

Interesse Público

Frederico Vasconcelos - Frederico Vasconcelos
Frederico Vasconcelos
Descrição de chapéu Folhajus

Como surgiu a Carta pela Democracia no ano da eleição de Lula

Juiz relata em livro o que não veio a público sobre o ato no Pátio das Arcadas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O juiz federal Ricardo de Castro Nascimento lançará nesta segunda-feira (7) o livro "Bastidores". É o relato da costura oculta que resultou na "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito" lida em 22 de agosto de 2022, no Pátio das Arcadas, na Faculdade de Direito da USP. (*)

É uma homenagem aos subscritores da Carta de 1977. O evento foi replicado em mais de 80 faculdades de direito de todo o Brasil, com mais de um milhão de subscritores.

Como participou da construção do novo documento desde o início, Nascimento decidiu "escrever a história como viveu".

Livro relata os bastidores da Carta aos Brasileiros de 2022
Lançamento da "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito". Juiz federal Ricardo de Castro Nascimento, autor do livro "Bastidores" - Hucitec Editora/Fotos do Autor

"Nesta história não há personagens ingênuos. Todos sabiam o que estavam fazendo e aonde queriam chegar. O idealismo nunca se descolou da realidade do que acontecia no país nas vésperas do período eleitoral", diz Nascimento.

"Tomei as precauções na vida pessoal e profissional para uma dedicação exclusiva à Carta", diz o juiz. "Programei férias e combinei com a família. Precisava de dedicação exclusiva. Tudo se desenrolou em pouco mais de um mês".

Durante a organização "a principal fonte de consulta foi o Whattsapp do celular", revela o magistrado.

O texto a seguir reúne informações extraídas da apresentação do livro.

A Faculdade de Direito da USP teve um alinhamento com o golpe militar de 1964. Forneceu importantes quadros aos governos militares (Luís Antônio da Gama e Silva foi reitor e Alfredo Buzaid, diretor).

O alinhamento foi majoritário, mas não uníssono. A pluralidade de ideias e posições políticas sempre marcou a história da instituição até hoje.

A Carta aos Brasileiros de 1977 foi um ponto de inflexão da instituição, passando de um alinhamento ao regime militar a um apoio à redemocratização do país, posição já adotada pelos estudantes.

Tudo começou por iniciativa de antigos alunos reunidos no restaurante Circolo Italiano, no Centro de São Paulo. Eram Flavio Flores da Cunha Bierrenbach, José Carlos Dias e Almino Affonso, entre outros.

Procuraram Goffredo da Silva Telles Júnior, querido entre os alunos. Era um grande orador, mesmo tendo uma gagueira quase imperceptível. Não estava alinhado ao grupo favorável ao regime militar, mas nem sempre foi assim.

Quando jovem, participou da Ação Integralista Brasileira, nos anos trinta. Foi deputado constituinte em 1946, tendo participado dos debates que levaram à cassação dos deputados do Partido Comunista Brasileiro – PCB. Com o tempo, foi se aproximando do ideário progressista.

Seria o porta-voz ideal, pois ninguém ousaria acusá-lo, mesmo em plena ditadura, de comunista.

Houve também resistência de alguns professores mais progressistas em razão da timidez do conteúdo. José Afonso da Silva e Dalmo de Abreu Dallari foram os últimos a subscrevê-lo. Raymundo Faoro, então presidente do Conselho Federal da OAB, achou o texto muito longo e optou por não assinar.

Diante da expressa proibição pelo diretor do uso do salão nobre no dia 11 de agosto, a alternativa foi a leitura no pátio da Faculdade no dia 8 de agosto, uma sexta-feira, à noite. A maioria do público presente foi de estudantes.

Entre os alunos estava Otavio Frias Filho, então conhecido como Otavinho, filho de Octavio Frias de Oliveira, proprietário da Folha de S.Paulo. Visto no início com receio, em virtude do apoio dado ao regime militar pelo jornal, Otavinho conquistou a confiança de seus colegas, tornando-se bem ativo no movimento estudantil.

Ao mesmo tempo, ensaiava, sob a tutela do jornalista Cláudio Abramo, seus primeiros passos rumo à direção editorial do jornal controlado pela família. Poucos anos depois, exatamente em 1984, tornou-se editor-chefe, transformando o jornal com o Projeto Folha.

A cobertura da grande imprensa foi fundamental para o sucesso da Carta aos Brasileiros. Em seu duplo papel de jornalista e estudante, Otavinho teve participação importante. No dia da leitura da Carta, a Folha de S.Paulo trouxe com destaque uma entrevista do professor Goffredo ao jornalista Samuel Wainer. Foi um autêntico teste para os limites da liberdade de imprensa em tempo de abertura política.

O texto a seguir é um capítulo bem-humorado sobre as dúvidas entre os organizadores da obra

A restrição às assinaturas na primeira fase foi perdendo o sentido. As pessoas queriam trazer a assinatura de seus familiares. Estávamos segurando sem necessidade a onda crescente de assinaturas. A Carta de 2022 ia se desprendendo do modelo de 1977. Um telefone do Roque Citadini selou a mudança.

— Ricardo, o Juca Kfouri me ligou e quer assinar a Carta, mas ele diz que precisa primeiro fazer o curso de direito. Vai levar uns cinco anos. Perguntou também se precisa passar antes no exame da OAB. Por que a Carta não está aberta a qualquer pessoa?

— É uma espécie de manifesto de juristas. Eu coloquei a restrição porque a gente está seguindo o modelo de 77 e precisava conquistar espaço na Faculdade.

— Mas isso já conseguimos. É uma questão de tempo. O Juca disse que se a gente abrir, ele traz as assinaturas do Casagrande e do Raí. Eles já foram contatados.

— Roque, eu já estava pensando em excluir essa parte. Precisamos só falar com os outros organizadores.

— Não precisa, eu já falei com todos. Só faltava você. Depois a gente comunica à Faculdade, mas antes vamos trazer muita gente famosa.

Assim, a Carta de 2022 deixou de ser um manifesto de juristas. As três primeiras assinaturas de fora da comunidade jurídica foram justamente as de Juca Kfouri, Walter Casagrande Júnior e Raí Souza Vieira de Oliveira.

(*) O autor tem mestrado e doutorado em direito pela PUC-SP. Foi presidente da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul (Ajufesp), por dois mandatos.

LANÇAMENTO

"Bastidores - Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito" (Hucitec Editora) Ilustrações de Libero Maravoglia. Prefácio de Celso Campilongo e Ana Elisa Bechara. O lançamento será na segunda-feira (7), na livraria Martins Fontes da Avenida Paulista, a partir das 18h.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.