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Afroturismo, cultura negra e movimentos

Guia Negro - Guilherme Soares Dias
Guilherme Soares Dias

Salvador Capital Afro passa longe do protagonismo negro

Programa de afroturismo da capital da Bahia está concentrado em empresas brancas

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Guilherme Soares Dias
Salvador

Em 472 anos, Salvador nunca foi governada por um prefeito ou prefeita negro eleito democraticamente. A capital da Bahia tem 82% de sua população de pessoas negras, maior percentual do país. É o racismo estrutural tirando da maior parte da população o poder político e também o econômico.

As políticas públicas para as gentes pretas de Salvador são feitas ainda hoje por pessoas brancas. O turismo na cidade preta tem também uma ótica branca. Para nós que trabalhamos com afroturismo sempre foi um sonho ter os governos e empresas investindo nesse movimento dentro do turismo, que até então estava escanteado das políticas públicas.

O Salvador Capital Afro, programa promovido pela Prefeitura de Salvador que se define como "movimento de fortalecimento da cultura afro de Salvador" e conta com aporte de R$ 15 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), é um grande sonho que começou a virar pesadelo à medida que o programa avançava, por não ter negros no centro das decisões.

O atual prefeito de Salvador, Bruno Reis (União Brasil), se declara pardo, assim como seu padrinho político ACM Neto, mas não tem ascendência africana conhecida e nem é lido como negro na sociedade. Neto, como é conhecido, tentou em sua candidatura ao governo da Bahia fazer um uso político da pauta, que está "na moda", mas não colou, virou meme e ainda perdeu as eleições.

Ainda assim, Salvador é a única capital do país que tem uma Secretaria Municipal da Reparação (Semur) e não da igualdade ou diversidade. Também é a única pasta com número significativo de pessoas negras e foi parte importante para o projeto sair do papel. Conquista do movimento negro local, que fique claro.

O programa Salvador Capital Afro foi feito por meio de edital, teoricamente uma via democrática de seleção de projetos. Mas o poder econômico fez mais uma vez com que empresas de pessoas brancas vencessem as principais concorrências.

Lançamento do programa Salvador Capital Afro, no dia 19 de agosto, em Salvador, com apresentações de grupos de dança e shows musicais. Projeto visa incentivar o afroturismo e o afroempreendedorismo. Foto: Divulgação/Prefeitura de Salvador

O programa foi formatado com três pilares: o Salvador Capital Afro (eventos de valorização e fomento da economia criativa preta da cidade e marketing), o Afrobiz (plataforma para empreendedores negros) e o Rolê Afro (desenvolvimento de roteiros turísticos afrocentrados).

Entre as empresas selecionadas pelo edital para o Rolê Afro, por exemplo, estão as italianas Target Euro e Artès. Cada um dos tripés do programa tem uma atuação e a política toda é gerida pelo Programa Nacional de Desenvolvimento e Estruturação do Turismo (Prodetur), que mais uma vez tem pessoas não negras à frente do projeto.

O Afrobiz fez o cadastro de afroempreendedores, eventos e consultorias. No site, copiou algumas reportagens produzidas por nós, do Guia Negro, sem dar os créditos. Notificados, pediram desculpas e tiraram os conteúdos do ar.

Não houve remuneração pelo uso do material e o programa não prevê ainda verba para a mídia negra, que cobre assuntos como esse e costuma ser excluída de planos de mídia de grandes projetos. A mídia negra não poderia ter ficado de fora desse plano. Mas ficou. E assim, a história segue sendo contada na perspectiva do colonizador, com a mídia tradicional branca comprando a narrativa da produção do evento, sem nenhuma perspectiva e perguntas críticas.

Quando o Salvador Capital Afro foi lançado, o Guia Negro foi convidado para o lançamento como mídia. Até aquele momento nenhum ator que trabalha com afroturismo havia participado das mesas, decisões, dado consultoria ou ajudado a gestar o programa.

Escrevemos que não dava para fazer afroturismo sem quem faz afroturismo. E vimos a terceira parte do programa que desenha novos roteiros turísticos ser pré-anunciada como um nome muito parecido com o nosso, que também realiza esse trabalho. Ressaltamos em reuniões com a Prodetur e Semur que não ia dar para nos copiarem mais uma vez. O programa ganhou o nome, então, de Rolê Afro.

Foi o suficiente para sermos considerados persona non grata nos diversos eventos que fizeram, sem nos convidar para mesas ou enviar releases de anúncio.

O Festival Salvador Capital Afro, que começou nesta quarta (30) e vai até o 4 de dezembro, não tem o Guia Negro entre os seus debatedores. Alguns dos principais nomes do setor só entraram no evento após intervenção de quem atua na área. De forma geral, o festival privilegiou startups de ar-condicionado à aquelas que fazem trabalho de base, na rua, que contam histórias que a história oficial não conta, como é o nosso caso.

De acordo com o consórcio, que está à frente do Salvador Capital Afro, todos os contratos das ações de implementação do Plano Afro têm como regra contratual a composição de equipe com pelo menos 60% de pessoas negras. "É importante destacar também que a maioria de pessoas negras atua em posições de liderança", diz em nota, desconsiderando que as empresas pertencem a pessoas brancas.

Já a ausência do Guia Negro nas mesas de debates do festival é justificada pelo convite que se restringiu a uma mentoria destinada a 15 novas empresas do setor. "Cabe destacar que na programação há diferentes iniciativas de afroturismo de todo o país, contemplando a diversidade de atuações do segmento", informa.

O manifesto de Afroturismo feito por nós, que define o movimento como afeto, afronta e futuro, não estará, no entanto, presente. A afronta, nesse caso, foi o que nos tirou do evento. Tiveram medo de nos ouvir.

Mas terão que nos ler e temos algumas perguntas. O consórcio tem medo do debate que a gente provoca? Como construir políticas públicas sem ouvir críticas? Por que só há empresas chefiadas por pessoas brancas no processo? Haverá sinalização turística dos lugares de cultura e história negra? Como se dará a valorização das baianas, símbolo da cidade, mas sempre renegadas pelo poder público no dia a dia? Qual será o papel dos blocos afros nessa política?

E continuo: Quando as mulheres negras (baianas de acarajé e trancistas) terão um lugar para elas no Pelourinho? Haverá educação patrimonial para os guias pararem de replicar histórias com narrativas eurocêntricas? Haverá investimento para construir monumentos em homenagem a pessoas negras? Pessoas negras ganharão homenagens em nome de ruas e praças, assim como pede o movimento pela Rua Alaíde do Feijão?

No fundo, o Salvador Capital Afro mostra que quer os negros naquele lugar apenas de executores. É uma política para nós, que não foi pensada, nem faz a grana circular na nossa comunidade (a tal da reparação pela qual tanto lutamos e temos direito).

Muitos dos negros contratados reclamam justamente dos valores que estão recebendo. Lembramos que o movimento que fazemos é chamado de afroturismo, não turismo étnico, como foi no passado. Salvador está bem distante de ser Wakanda, mas é a capital afro do Brasil, com toda a potência e racismo que isso implica.

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