Guia Negro

Afroturismo, cultura negra e movimentos

Guia Negro - Guilherme Soares Dias
Guilherme Soares Dias
Descrição de chapéu indígenas

Memorial negro da Liberdade terá nova empresa de arquitetura

Escritório Paulistano de Arquitetura desistiu do edital após pressão dos movimentos; Secretaria Municipal de Cultura ainda não definiu se haverá novo edital

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Guilherme Soares Dias

O bairro da Liberdade, em São Paulo, carrega um passado importante para a história das pessoas negras na cidade. Foi ali a primeira moradia de muitos escravizados e libertos, e também os lugares de tortura (pelourinho) e enforcamento (sim, o Brasil teve pena de morte e execução pública de negros e indígenas). Era ali que ficava também o Cemitério dos Aflitos (1775 a 1858) dedicado a negros e indígenas.

Essas histórias foram apagadas sistematicamente e transformaram o antigo bairro negro em japonês no século 20. Mas essa narrativa tem vindo à tona e sido cobrada pelos movimentos sociais. Em 2018, foram encontradas nove ossadas numa obra ao lado da Capela dos Aflitos, única marca visível do cemitério nos dias atuais e que está localizada na Rua dos Aflitos. A construção onde estavam os esqueletos era de um centro comercial em construção pertencente a um empresário chinês e que foi paralisada. O local foi desapropriado e os movimentos populares começaram a cobrar o Memorial dos Aflitos.

Área do futuro Memorial dos Aflitos, na Liberdade, em São Paulo (Foto Danilo Verpa/Folhapress, COTIDIANO) - Danilo Verpa

Os anos se passaram e em 2023, finalmente, um edital previu a construção do memorial que vai (re)contar a presença negra e indígena no bairro. Mas nem tudo foi como o esperado. A empresa vencedora do certame, o Escritório Paulistano de Arquitetura, não se limitou ao projeto do memorial e previu a destruição de parte da Capela: do seu velário e da lojinha. A questão é que o prédio é tombado e tem estrutura independente a do futuro memorial.

Começaram ali os questionamentos da capacidade da empresa em gerenciar a obra. Numa reunião no dia 24 de maio de 2023 na Capela dos Aflitos a tensão aumentou. Os arquitetos que representavam o escritório mostraram desconhecimento da causa e tiveram falas classificadas como racistas pelo movimento. A secretária Municipal de Cultura, Aline Torres, ficou ofendida com o não aceite da sociedade civil em relação ao projeto e disse que caso o edital não fosse a frente precisaria gastar os R$ 4 milhões liberados de outra forma.

Foi o suficiente para os movimentos começarem a questionar o edital, pedindo a participação de mais pessoas negras, mais prazo, além de garantia de estrutura mínima para realização de eventos no futuro espaço, como anfiteatro, reserva técnica, banheiros, copa e vestiário. Houve ainda o questionamento do uso da areia do terreno, considerada sagrada por fazer parte de um cemitério, para concretar as paredes.

"Esse é um memorial feito pelo povo e para o povo. Não queremos que seja apenas uma pracinha com uma cruz. Precisa servir para os nossos, ter eventos, atividades educativas e culturais", destaca Eliz Alves, coordenadora da União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Unamca), lembrando que o projeto está fazendo um desserviço e pedindo o chamamento de um novo edital, que tenha a participação de arquitetos negros e indígenas.

Já Abilio Ferreira, coordenador geral do Instituto Tebas, lembra que o edital não deu oportunidade a pessoas negras formularem projetos para concorrer. "Favoreceu a concentração de oportunidades, como sempre aconteceu na sociedade", frisa. Ele lembra ainda que a Secretaria Municipal de Cultura fechou o diálogo a partir da demonstração de insatisfação com o projeto.

A obra do Memorial ainda não garante outro pedido do movimento: o fechamento da Rua dos Aflitos transformando-a em calçadão e deixando de receber caminhões que carregam e descarregam mercadorias, além da retirada das luminárias japonesas que não reflete a história do povo negro do local. A via foi inscrita no projeto "Ruas Abertas", que prevê seu fechamento para carros e abertura como espaço de lazer aos domingos, como já ocorre com outras regiões de São Paulo.

Desistência

Enquanto apurava esse texto nos últimos três dias, a situação foi mudando. Enquanto a Secretaria Municipal de Cultura informou, por meio de nota, que o projeto vencedor do Memorial dos Aflitos já passou por adequações, que acataram os pedidos elencados e que foi homologado, o Escritório Paulistano de Arquitetura informou em primeira mão ao Guia Negro que desistiu da proposta.

Segundo o diretor do Escritório Paulistano de Arquitetura, Eduardo Colonelli, a obra é importante para toda a cidade e uma conquista do movimento social e não daria para ser feita sem anuência do mesmo. Ele reconhece que algumas intervenções previstas no projeto eram inadequadas, como a demolição parcial da capela, e que o escritório estava disposto a fazer as adequações pedidas, mas que a impossibilidade de entendimento com os movimentos motivou a desistência. "Percebemos que o processo não foi suficientemente maduro e aprendemos com isso a rever nossos procedimentos, elaboração de projetos e até constituição da equipe", garante.

Antes da desistência do escritório, A SMC enviou nota informando que a administração municipal ouviu e dialogou com os movimentos, entendendo a importância do Memorial para a sociedade civil e realizando as modificações necessárias. "A SMC não pode interferir na composição do escritório vencedor, mas pode garantir que a programação do memorial e o material expositivo serão construídos partindo do diálogo com a sociedade civil", informa.

Com a desistência do Escritório Paulistano de Arquitetura, a SMC não respondeu até o fechamento desse artigo se haverá um novo edital ou se o segundo e terceiro colocados do antigo certame serão convocados. De todo esse processo fica uma lição: não dá para contar a história negra, sem as pessoas negras em todas as etapas.

Que o Memorial dos Aflitos previsto para ser inaugurado em 2024 tenha mais verbas, mais atenção do poder público e possa, finalmente, contar a história dos povos negros e indígenas do bairro da Liberdade. Essa luta é de todos nós!

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