Guia Negro

Afroturismo, cultura negra e movimentos

Guia Negro - Guilherme Soares Dias
Guilherme Soares Dias

Minha jornada para ser a primeira brasileira a passar por todos os países

Relato de nômade digital que pretende percorrer os 200 países do mundo

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Nataly Castro

Meu nome é Nataly Castro, sou da Vila Carrão, zona leste de São Paulo. Tenho 28 anos, filha de um marceneiro e de uma neuropsicopedagoga. Meus pais sempre me incentivaram a investir nos estudos, pois sabiam que a educação me levaria longe. Embora não tivéssemos uma ótima vida financeira, a minha família sempre fez de tudo para que eu, meus irmãos e primos tivéssemos pelo menos alimento no prato e educação.

Há cerca de quatro anos surgiu a ideia de visitar todos os países reconhecidos pelo ONU do mundo e em seguida iniciar um projeto de bolsas de intercâmbio para jovens brasileiros de baixa renda estudarem no exterior. A intenção era também disputar o recorde mundial do Guinness, de mulher que viajou todos os países em tempo recorde.

O custo da viagem seria cerca de R$ 500 mil. Como não tinha esse valor, tive a ideia de abrir uma cafeteria para levantar recursos. Algumas semanas depois de alugar o espaço, começou a pandemia e o plano de iniciar a viagem foi adiado. Usei esse período para montar o negócio e desenvolver o projeto da viagem, buscar parcerias e patrocínio.

Ao todo foram mais de 50 mil mensagens enviadas. Acreditava que um projeto desse tamanho com uma proposta socioeducacional chamaria atenção e levantaria recursos rápidos, mas não foi o que aconteceu.

Dos 50 mil emails, eu tive cinco respostas positivas, e foi quando eu decidi começar com o que eu tinha, pois se ficasse esperando as condições perfeitas nunca iria começar. Como tinha investido tudo na cafeteria, deixei o estabelecimento aberto na esperança de levantar recursos para ir custeando a viagem. Comecei a volta ao mundo com R$ 15 mil reais e seis parcerias.

Parti na certeza de que muitas coisas iriam acontecer no caminho. Era hora de desbravar o mundo, conhecer novas culturas, costumes, aprender, ensinar e inspirar. No terceiro país sofri um acidente e capotei da moto, fui levada de ambulância ao hospital.

O osso do meu pé direito trincou e tive que seguir a viagem com o pé enfaixado, usando muleta e embarcando com cadeira de rodas. Eu sabia o que queria e não poderia deixar aquela situação me fazer parar. Foram países de muleta, remédio para dor, lágrimas e aventuras.

Consegui visitar 50 países com o dinheiro que tinha. Isso foi possível pois tenho habilidade de planejar rotas, priorizar o que é essencial, reduzir custos por meio das hospedagens no caminho. Visitei outros 30 países de ônibus por meio do patrocínio da Flixbus e economizei muito com refeição com a parceria da Priority Pass, que me deu acesso ilimitado às salas VIP nos aeroportos.

O meu recurso financeiro estava chegando ao fim quando decidi vender a cafeteria. Abri mão de um sonho para sustentar outro. Fiquei triste, mas ao mesmo tempo sabia que era algo que valia a pena, afinal eu sou empreendedora e sabia que lá na frente se quisesse abrir outra eu conseguiria.

Não consegui vender a cafeteria pronta, então minha família foi desmontando e vendendo item por item. A cada peça vendida eles me enviavam o valor para seguir viagem. Semanas depois, surgiu a primeira empresa que patrocinou o meu projeto financeiramente, a BeFly, o maior ecossistema de negócios focado em turismo, que me permitiu conhecer mais de 60 países.

Viajar é incrível e uma oportunidade para explorar o mundo que vivemos. A zona de conforto é boa, mas é cômoda. Quando nos abrimos ao mundo, somos surpreendidos. Estamos sujeitos a experienciar situações negativas, mas cabe enxergar o que aquela experiência tem a nos ensinar, a nos mostrar.

Está sendo um grande aprendizado conhecer tantas culturas, costumes dos povos de outros países, ver que cada um tem seu jeito de viver e pensar. Essa diversidade nos mostra que somos parecidos e ao mesmo tempo muito diferentes.

Viajar sozinho é se autoconhecer; você trabalha em você, nos seus pensamentos, atitudes, falas e descobre o quanto tem a aprender. O lado bom de viajar sozinho é ter o controle das escolhas. O roteiro é seu, o tempo é seu e o gosto também.

Ser mulher viajando sozinha tem os prós e contras. O lado bom é fazer novas amizades. Tem lugares que ser mulher também é vantagem, pois as pessoas tentam cuidar, proteger, trazer pra perto. Quantas portas se abriram, refeições gratuitas, acomodações, caronas e diversas ajudas que tive no caminho justamente por ser uma mulher sozinha.

O ponto negativo de ser mulher viajando sozinha é a questão da vulnerabilidade quando passamos por alguns lugares que tem um índice menor de segurança. Lugares com pouca segurança pública, em conflitos, guerras ou onde as mulheres não têm muitos direitos.

Mulher negra em frente a templo religioso durante viagem de volta ao mundo
Nataly Castro já passou por 135 países e está na reta final de viagem de volta ao mundo - acervo pessoal

Devido ao tempo que tenho para alcançar o objetivo, o plano era ficar pouco tempo nos países. Mas muita coisa foi mudando durante a viagem, tem lugares que fiquei meio dia e outros fiquei algumas semanas.

Estou na reta final da viagem e posso afirmar que se dinheiro não fosse o problema, eu conseguiria terminar essa viagem em menos de 1 ano.

Acredito que visitar um lugar vai muito além do tempo que você fica nele, mas sim, o que você fez no tempo que esteve lá. Estou abrindo portas e caminhos, inspirando, gerando oportunidade e mostrando possibilidades. A minha viagem está sendo um exemplo de superação, resiliência e potência pois não estou apenas fazendo turismo, mas realizando uma jornada para conectar pessoas e sonhos.

Visitei mais de 135 países e alcançarei a meta de visitar os 200 em breve. O continente africano foi o escolhido para encerrar o projeto com chave de ouro. Tem um motivo muito especial para terminar a viagem na África, afinal são 54 países com tanta história, cultura, diversidade e potência. O continente africano é um berço de civilização, com raízes africanas, ao pisar no primeiro país foi um sentimento de pertencimento, como se tivesse voltado para casa sem ao menos ter estado nela.

Minha trajetória

Minha mãe dizia que tínhamos que ser ótimos alunos duas vezes: primeiro porque era o nosso dever e segundo porque somos negros. Durante a adolescência sofri alguns episódios de racismo na escola. Alguns alunos não aceitavam uma jovem negra se destacar, ser escolhida pelos professores e diretores para participar de eventos e projetos. Recebi apelidos, xingamentos, ameaças, empurrões e cuspe.

Por meses eu guardava aquilo e ia pra casa sem falar pra ninguém, mas minha mãe foi descobrir o que estava acontecendo quando começou a ser chamada várias vezes na escola para me buscar mais cedo.

Estava cansada daquela situação e com princípio de depressão. Comecei a achar que tirar a minha vida seria uma solução para acabar com tudo. Infelizmente, tentei o suicídio três vezes.

Numa delas, o céu estava lindo e tinha apenas um avião passando. Eu olhei para o avião e pensei: pra onde será que esse avião está indo? Está cheio de gente indo para algum lugar. Imagina se um dia eu entrar num desse e viajar pra lugares que ninguém me conhece, que ninguém me julga e assim eu posso ser livre e feliz.

Esse momento foi a minha virada de chave e em seguida eu disse: pois eu vou entrar num desse, investir em mim, na minha educação, viajar o mundo, fazer novos amigos e recomeçar. Desisti da tentativa e coloquei dentro de mim que não iria tirar a vida por causa da opinião das pessoas.

Comecei a buscar oportunidades de estudos, bolsas de intercâmbio, trabalho etc. Hoje, sou jornalista de viagem e nômade digital. Estou na estrada desde 2013 e tive a oportunidade de participar de um concurso cultural na minha cidade ganhando uma bolsa de intercâmbio para estudar inglês na Irlanda.

Estudei e trabalhei como babá, garçonete, camareira, auxiliar de cozinha, caixa e barista. Viajei para alguns países e só isso despertou o desejo de explorar o mundo. Depois de um ano, voltei ao Brasil e decidi me mudar para algum país em que eu pudesse praticar o inglês. Foi quando fiz as malas e me mudei para os EUA, lá eu coloquei o inglês em prática e também trabalhei. Em seguida fui para Europa e assim comecei a vida nômade trocando de países de tempos em tempos.

Investi em palestras e eventos para aprender sobre indústria de viagens e turismo, blogueiros e nômades digitais. Fiz o perfil Viaje Sem Limites para compartilhar experiências de viagem e inspirar outras pessoas.

Depois de alguns anos sendo nômade digital, trabalhando remotamente e viajando, decidi voltar ao Brasil. Nesse período surgiu a ideia da volta ao mundo e também da abertura de uma cafeteria.

Durante a pesquisa vi que no mundo com mais de 8 bilhões de pessoas, uma média de 150/170 visitaram todos os países. Na época não tinha nenhum brasileiro que fez isso ,e também só uma mulher negra no mundo todo. Logo pensei: então vou ser a primeira mulher brasileira e negra a fazer isso, e automaticamente, a segunda negra no mundo. E cá estou prestes a realizar esse grande sonho.

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