Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Memórias estão guardadas em mais lugares além da visão

Como ficam armazenadas as novas sensações quando os sentidos não são mais os mesmos?

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Nunca havia ouvido falar em cannoli até fazer um intercâmbio de um mês em Boston, em 2014, para praticar inglês.

A estadia começou mal. Logo descobri que era falsa a minha crença de que alguém com baixa visão andaria com tranquilidade no primeiro mundo, que eu imaginava infinitamente receptivo e acessível, ainda mais depois de estar habituado ao Metrô lotado de São Paulo.

eu me perdia várias vezes por dia nas ruas sinuosas da parte antiga da cidade, onde estava hospedado,não conseguia enxergar as placas indicando nome das vias e ficava desorientado tentando atravessar as muitas praças no meu caminho. Além disso, enfrentava alguma inibição para falar inglês e, mesmo que não houvesse qualquer timidez, encontrava muito menos gente a quem pedir ajuda na rua do que em minha cidade natal. Para completar, fui recebido pelos colegas de casa com uma boa dose do que, anos mais tarde, descobriria que se chama capacitismo (preconceito contra pessoas com deficiência).

No primeiro final de semana, em que não tinha coragem de ir a qualquer lugar sozinho nem companhia, fiquei assistindo Netflix em casa, em vez de aproveitar o tempo no país estrangeiro que estava ansioso para descobrir. Pensei em antecipar a passagem de volta.

Por isso, ao ouvir, mesmo sem entender os detalhes, o professor de inglês falar maravilhas das padarias que ofereciam a iguaria, que mais tarde soube serem canudos de massa frita recheados com creme, veio a esperança de encontrar alguma alegria para mim naquela cidade em que me sentia tão sozinho e desajustado. É que o doce era vendido no bairro conhecido como Little Italy, justamente onde eu estava morando. Para chegar até ele não seria preciso pegar ônibus ou metrô nem torcer para encontrar algum amigo para ir comigo.

Foto mostra três cannoli de sabores diferentes sobre o açúcar - Leticia Moreira- 14.out.2011 / Folhapress,

Liguei para meu irmão que, de São Paulo, abriu a internet, olhou o mapa e me ditou a direção para a Mike's Pastry para que anotasse em meu celular, que tinha um software leitor de tela, mas ainda era daqueles com teclado físico que não conseguiria rodar um aplicativo de GPS.

Não acertei o caminho com facilidade nem na primeira, nem na segunda tentativa. Mas aos poucos fui pegando o jeito e buscar um café com leite e um cannolo virou parte indispensável da rotina até meu ~ultimo dia ali.

Daí que não consigo pensar em cannoli sem lembrar com saudades da liberdade que sentia ao perceber que deixava para trás o desamparo de me sentir perdido e passava a gostar de usufruir a exploração dos caminhos desconhecidos.

Agora a padaria do lado de casa começou a vender canoles.

Pensei que provar um canudinho poderia me transportar para aqueles tempos que, após muito zigue-zague sem rumo, terminaram por deixar boas recordações.

Logo à primeira mordida o açúcar , tanto o do creme como também o que estava em volta da massa, me fez côcegas na nuca de tão doce. Será que era assim lá nos Estados Unidos?

A verdade mais honesta é que sei dizer que os adorava, mas não faço mais ideia de como eram para compará-los com os daqui.

Fiquei pensando se não será o destino de muitas memórias importantes e que guardamos com carinho deixarem de ser sensoriais para se tornarem semânticas.
Nesse processo, a sensação que foi despertada lá atrás é trocada pelos conceitos e ideias que surgiram a partir dela. Em vez da riqueza da forma, cor, gosto, peso e cheiro, resta só a recordação em palavras escritas numa espécie de diário mental de que era delicioso. Será que armazenar a experiência de um cannolo em termos vagos como fantástico ou maravilhoso sobrecarrega menos o cérebro do que deixá-lo pronto para reproduzi-la mentalmente a qualquer momento? Como para mim não adianta ver fotos para tentar descobrir se o sabor retorna a minha mente, só mesmo voltando para lá para ter certeza se o doce era tudo isso mesmo. Será que, sem sentir a mesma solidão daqueles dias, meu encontro com o cannolo seria tão doce como daquela vez?

Penso em livros e filmes que sei que me emocionaram e cuja lembrança do título me faz sentir uma pontada de alegria ou de tristeza, eco do que me provocaram no passado, sem que eu consiga evocar praticamente nenhuma informação a respeito do enredo, nome dos personagens ou onde se passa.

Talvez venha daí o desejo de aprender música. Estudar a partitura nota a nota até decorar tudo é uma forma de tomar posse de suas sensações, de poder fazê-la tocar dentro de si a qualquer momento.

E como ficarão impressas as sensações e suas recordações quando os próprios sentidos que as captam estão em transformação?

Uma das minhas estratégias em noites de insônia é me imaginar caminhando na rua de casa, me vendo do alto, passo a passo em direção ao trabalho, à academia, ao colégio em que estudei.

Será que meu passatempo para cansar o cérebro continuará viável quando os caminhos forem outros e meus olhos não puderem mais colaborar na construção desses mapas mentais?

Mais provável é que serão mapas de outranatureza, desenhados pelo relevo que os pés sentem ao tocar o chão, pelos sons ao redor e pela sensação provocada pelo vento no rosto. Em vez de me ver do alto, aprenderei a imaginar e a sentir que estou ali presente, enfrentando cada degrau da calçada? Hoje, ainda repleto de memória visual, apesar de pouca visão, me parece uma tarefa difícil, que exigiria mais energia mental do que o habitual. Mas quem sabe do que a mente ~é capaz?

Na verdade, talvez não seja tão difícil assim. Enquanto algumas lembranças se escondem dos sentidos sob uma névoa de palavras, muitas outras podemos trazer à mente agora mesmo, apenas com o tato, o paladar, o olfato e a audição?

Estão comigo a qualquer momento o quentinho do doce-de-leite do rocambole da minha vó assim que ele saía do forno e o brigadeiro de colher que comíamos direto da lata na casa dela; o sanduíche "prensado" da cantina da escola; uma mão de namorada bem apertada; O som do despertador que dá calafrio quando toca fora de hora; um cachorro meio maluco que lambe a orelha, arranha braços e pernas enquanto faz festa; a meia ensopada depois de pisar numa poça d'água gelada em dia de chuva; o cheiro de flores da vila daqui de casa de noite.

Além da falta de habilidade óbvia, sempre fui desleixado com fotos. Nos últimos dias de minha estadia em Boston, me dei conta de que tinha feito muito poucas. Resolvi então, do meu jeito, fotografar o quarto, a porta de casa e a rua em que fiquei. Nunca olhei e hoje nem poderia. Também acabei nem as postando em redes sociais, nem as apagando, ou mostrando para ninguém. Não saberia encontrar as palavras para descrever bem muito do que está ali. Mas, de um jeito ou de outro, ainda me lembro de (quase) tudo.

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