Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira
Descrição de chapéu mercado de trabalho

Os trabalhos e os cegos

Existem profissões que não são viáveis, outras estão ficando mais acessíveis e a maioria depende de aprendizados e descobertas

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São Paulo

Há algumas décadas, as pessoas arranjavam um emprego e faziam o possível para só sair dali quando estivessem aposentadas.

Agora o cenário mudou e parece que a tendência é ter ao menos uma carreira diferente por década. Assim, passados meus 30 anos, estou aqui a pensar outra vez no que vou ser quando crescer.

Algumas profissões não estão disponíveis para quem não enxerga e ponto final, não adianta culpar o capacitismo ou a sociedade excludente.

Eu, por exemplo, prefereria não andar no banco de passageiro de um motorista de Uber ou piloto de avião que não enxerga.

Outras, por outro lado, de tempos em tempos viram preferência nacional das pessoas com deficiência visual.

Há pouco o forte era a massoterapia. Antes, veio o trabalho na câmara escura de revelação de filmes de radiologia. Agora, tudo indica que são as consultorias em audiodescrição e também em acessibilidade digital. Afinal, a falta de visão não atrapalha em nada na hora de cuidar do corpo de alguém com as mãos ou de avaliar se um produto feito para quem não vê está bom.

Outras atividades ficaram mais acessíveis conforme a tecnologia avançou. Com um grande volume de processos digitais, o trabalho de um juiz, promotor ou advogado que não vê ficou mais parecido com o de seus colegas, pois ele pode escutar a maior parte das petições, despachos e decisões que precisar.

Porém a maioria das atividades não é nem inviável, nem plenamente acessível. Ainda precisam ser desbravadas por pessoas cegas ou com baixa visão dispostas a descobrir e ensinar como se faz.

Você já pensou se um cego poderia ser vendedor de uma loja? Nunca vi nenhum. Mas por que não?

Talvez o vendedor não soubesse quando o cliente entrasse. Mas e se esse funcionário estivesse em uma posição em que fosse fácil de encontrá-lo, usando o uniforme da loja e bengala? O comprador não poderia ir até ele e perguntar qual o melhor modelo de geladeira ou smartphone? se o vendedor tivesse conhecimento, habilidade para se locomover por ali e um aparelho acessível para fazer a cobrança, ele não poderia conseguir fechar negócio?

Caso o sistema fosse acessível, também me parece viável que a pessoa que não vê fosse operador de telemarketing. Será que as plataformas com as quais se trabalha no setor, porta de entrada no mercado de milhões, são testadas para permitir a inclusão de mais esse grupo?

Existem muitas as atividades sobre as quais a gente fica pensando que pode fucnionar, mas será que vão nos querer?

Como alguém pode ser um professor sem enxergar? Se for em uma escola, vai conseguir dar conta de 30 alunos cheios de energia para bagunçar? Vai escrever na lousa? Como vai corrigir provas? Ensinar o conteúdo de um livro que ele próprio não consegue enxergar?

Tenho certeza que há vários jeitos de fazer tudo isso, mas será que os diretores e coordenadores estarão dispostos a descobrir como fazer? E se um pai reclamar?
Ouvi há poucos dias de um músico cego professor em escolas públicas que é preciso andar com um livro jurídico no bolso, porque é necessário acionar a Justiça o tempo todo para que não o impeçam de assumir novas turmas. Claro que ele falava metaforicamente, porque o livro não cabe no bolso e ele nem teria como lê-lo, a menos que estivesse baixado no celular.

Quando virei jornalista, não sabia como faria um monte de coisas. Como apurar na rua sem poder usar um bloquinho de anotações? Não estava habituado a chegar em grandes eventos e descobrir como me virar para trazer alguma informação. Centenas de vezes recebi de minhas fontes tabelas ou fotos, que não eram acessíveis para que eu lesse. Descobri até como pedir ajuda nessas situações; Aprendi algumas soluções e acredito que muitos colegas de Folha aprenderam comigo.

A inserção das pessoas com deficiência visual no mercado é tão incipiente que ainda não está claro para a maioria o que é possível fazer e quais as adaptações necessárias. Talvez eu esteja sendo otimista demais. Na verdade, a maioria não sabe nem que podemos usar um celular ou um computador. Que dirá ter expectativa de que possamos projetar uma ponte ou escrever um livro?

No fim, ficamos com um mercado de trabalho que, por definição, já é mais escasso, limitado pela falta de conhecimento e de disposição de adaptar e estar aberto a fazer as coisas diferentes do lado de quem contrata.

Uma pequena sugestão para começar a mudar isso: pesquisadores e especialistas em inclusão no mercado poderiam reunir experiências de inclusão de pessoas cegas que tiveram êxito em áreas inesperadas e descobrir qual a receita para que houvesse sucesso naquele caso. Como um médico fez para conseguir atender sem enxergar? O que ele conseguia fazer sozinho e onde ele precisava de algum apoio? Que recursos usou? Como o hospital em que ele trabalha colaborou?

O resultado de mais conhecimento e de uma mudança de cenário será permitirmos que as escolhas de quem tem alguma deficiência dependam mais de suas habilidades, capacitações e gostos do que das posições que foram definidos pelos outros como reservadas ou apropriadas para quem tem alguma limitação.

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