Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Lições de minhas primeiras omeletes

Desculpas para não começar e a alegria na descoberta de soluções

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São Paulo

O ano de 2024 começou com uma grande mudança em meus hábitos alimentares.

Saíram os sanduíches de pão de forma que fazia as vezes de jantar, entraram omeletes.

Até chegar a isso, não foram poucas as vezes que minha namorada insistiu que eu deveria me alimentar melhor até que eu mudasse o cardápio. Concordava, mas o que fazer? Pedir comida fora todo dia ficaria caro. Tampouco eu sabia fazer grandes coisas na cozinha que me nutrisse razoavelmente.

Confiante, garantia que um dia certamente iria aprender a fazer algo melhor, especialmente quando não fosse só para mim. Aliás, era justíssimo, correto e necessário, acabou-se o tempo em que homem não cozinhava. Jurava, inclusive, que havia sido aluno exemplar nas aulas de Atividade da Vida Autônoma para pessoas com deficiência, diria até um especialista em descascar e picar. Acredite ou não, um dia tinha até feito escondidinho com supervisão da professora.

Mas, veja bem, eu preciso um dia montar uma cozinha bem arrumada e do meu jeito, com os equipamentos certos, utensílios bem organizados, temperos etiquetados em braille para eu conseguir achar. Além do mais, preciso estudar um jeito de descobrir o ponto das comidas. Como vou saber se está pronto, Qual o tempo de cozimento de cada coisa? Como que eu mexo no forno sem me queimar? Viu quanto trabalho? Mas eu sei que dá, vai acontecer.

Até que ela resolve ser mais incisiva e faz chegar ao meu WhatsApp dois links de omeleteiras à venda. Uma com melhor preço, outra com vantagem nas avaliações de clientes. Fiz o que deveria fazer e, na manhã seguinte, o equipamento chegou em casa.

Esperei ansiosamente até a próxima visita dela para descobrir se a coisa toda daria certo. Sem muita conversa, fomos logo para a cozinha.

Por falta de utensílio melhor, separei um prato fundo e dois ovos. Havia mais de ano que eu não quebrava um e teríamos comido uma versão de omelete com lasquinhas de casca junto, caso ela não estivesse observando.

Continuamos mapeando os desafios, alguns que nem imaginávamos ainda. Logo notamos que seria melhor uma vasilha de plástico mais funda, para que não espirrasse nada enquanto eu misturava a clara e a gema.

A seguir, era preciso passar a mistura para a omeleteira que, segundo o manual, já deveria estar ligada e bem quente. Logo vimos que seria muito difícil para mim mirar os dois compartimentos do aparelho com aquele prato para despejar o líquido. Das duas uma, ou iria me queimar ou fazer muita sujeira. Provavelmente as duas mesmo.

Fui abrindo o aparelho de tempos em tempos e passando um garfo para sentir a densidade e a textura. Além de ir cronometrando para ter ideia de quanto tempo levava para ficar pronto. Porém, ao final, também não descobrimos como eu poderia tirar meu jantar dali do aparelho sem me machucar nem colocar tudo a perder. Havia pouquinho espaço para inserir um talher e, assim que eu conseguia arrastar algo para baixo da omelete, ela travessamente escorregava para o lado.

Por fim, nosso jantar ficou ótimo, a omelete soltou direitinho, mas ainda havia muito que melhorar. Afinal, a intenção era que eu fizesse tudo sozinho.

Amanhecemos no dia seguinte já na lojinha do bairro que tem tudo para casa, do capacho da entrada ao pregador de roupas da lavanderia, além dos baldes para brincar na praia e equipamentos de informática. Saímos de lá com novas espátulas, medidores e uma jarra de plástico com bico para eu mexer e despejar os ovos no aparelho com segurança.

Romantismo à parte, repetimos o prato na noite seguinte. Com o que aprendi na véspera, eu já sabia quebrar os ovos fazendo uma rachadura maior e que facilitava na hora de abri-los. Com a nova vasilha, tinha espaço suficiente para mexer o que estava na jarra, que foi perfeita para virar o líquido dentro do aparelho sem jogar nada fora e em uma distância segura.

Como nada é perfeito, a omelete seguiu escorregando da espátula, o que faz até hoje. Já foram mais de dez tentativas, todas muito saborosas, e minha janta segue graciosamente fugindo de mim.

A solução, provisória, tem sido posicionar o prato em um dos lados do aparelho e empurrar a comida para dentro dele do jeito atabalhoado que der. Não passei fome nem joguei nada no chão.

Enquanto penso em tudo o que aprendi na cozinha, imagino os bolos e macarronadas que farei, e, indo além, reflito sobre como a descoberta de formas seguras e acessíveis de realizar novas tarefas pode ser alegre, chega uma mensagem de áudio:

"Amor, fui no mercado. Achei na seção de utensílios um pegador de silicone. Ele tem duas garrinhas. Apertando, você vai conseguir pegar o alimento. Pode ser que dê certo."

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