Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Confiar diariamente em estranhos é a minha única opção

Independência de quem tem deficiência visual é, em grande medida, trocar o apoio dos familiares pela ajuda de uma multidão de desconhecidos

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São Paulo

Foram apenas dois ou três minutos de espera. O suficiente para que eu começasse a devanear sobre o que faria caso ele não aparecesse logo para me conduzir ao caixa e, depois, ao ônibus que me levaria de volta para casa.

Decidi que, caso eu contasse até trinta e nada dele voltar, iria prestar atenção nos sons ao redor para identificar alguém sentado em uma das mesas do posto. Avisaria que meu ônibus estava para partir e precisava de ajuda com urgência.

Talvez ainda desse tempo de localizar o Luiz, o funcionário que havia me ajudado a encontrar o banheiro e a seguir havia me deixado na mesa tomando café e comendo um enroladinho de presunto e queijo antes de seguir a viagem de cinco horas. Ele prometeu me encontrar assim que eu levantasse para indicar que havia terminado o lanche. Mas eu já estava de pé a dois minutos, talvez três, e nada. Quem sabe os clientes achassem outro profissional que pudesse me conduzir ou ainda algum deles deixasse seu próprio café para ir pessoalmente me levar até a porta da minha condução.

E se nada disso desse certo? Ligaria para a empresa dona do ônibus? Será que, sendo volta de Carnaval, haveria lugar disponível no próximo que parasse ali? Ou talvez passageiros deixados para trás fossem um problema corriqueiro e a própria gerência do posto tomaria os procedimentos para que eu chegasse com segurança em casa? Quanto custa um Uber de Limeira para São Paulo?

Nada disso foi preciso e tudo terminou da forma mais banal e natural. Luiz veio me encontrar, ele mesmo fez a cobrança no caixa e seguiu comigo até a porta do ônibus.

Acredito que uma boa dose de ansiedade em atividades banais deva ser bem familiar a qualquer pessoa que tem deficiência visual.

Sair ás ruas, para nós, é exercitar diariamente a capacidade de confiar em estranhos. Ou melhor, é acreditar que se vai encontrar algum estranho em quem se possa confiar. Confiar, é bom ressaltar, cegamente.

Muitas vezes já me perguntaram como eu consigo deixar que uma pessoa que eu não conheço me conduza, somente segurando em seu cotovelo, na maioria das vezes sem que ela tenha qualquer preparo prévio. Provavelmente você teria alguma dificuldade de se deixar ser levado de olhos fechados por qualquer um que acabou de conhecer. Para mim, porém, é como as coisas funcionam de segunda a domingo.

Nas condições atuais de nossas cidades, é praticamente impossível que o deslocamento de quem não enxerga não dependa de ninguém. Para começar, vamos precisar de ajuda para atravessar boa parte das ruas, que não tem semáforos sonoros.

No ponto de ônibus, é necessário que alguém diga quando o veículo que precisamos está chegando. Não basta só encontrar alguém que prometa que fará isso. Precisamos acreditar que a pessoa irá se lembrar de avisar caso o ônibus que ela precisa chegue primeiro. É bem possível que essa alma caridosa vá embora silenciosamente e nos deixe pensando que o Terminal Capelinha está demorando mais do que o habitual, apesar de já ter passado duas vezes. Aliás, é preciso acreditar também que o motorista ou algum outro passageiro irá nos avisar sobre o ponto certo de descer, caso não estejamos familiarizados com o caminho.

Quando vamos ao supermercado, temos que pedir a companhia de alguém da loja. E torcemos para encontrar um profissional com preparo e boa vontade, que realmente liste os vários produtos disponíveis com mais do que meias palavras, leia os preços, tenha paciência de tirar dúvidas e dar diferentes embalagens para segurarmos para conferir o tamanho.

Quando estamos em uma fila organizada por meio de senhas e painéis eletrônicos, precisamos confiar que alguém irá dizer que chegou nossa vez e não vamos ficar para trás.

Será que o garçom vai ter paciência e habilidade para explicar os pratos, caso não haja cardápio acessível? O professor da academia vai lembrar que precisamos de ajuda para encontrar cada equipamento? O hotel vai enviar alguém até o quarto para me conduzir até o café da manhã?

Por conta da falta de acessibilidade generalizada em nossas cidades e em muitos serviços que precisamos diariamente, em muitos momentos, a independência de pessoas cegas é, na verdade, uma independência em relação às pessoas próximas, aos familiares, vizinhos e amigos mais chegados. Para que possamos escolher nossos caminhos, trocamos a segurança que é a companhia de quem mais confiamos pela incerteza de estar ao lado do primeiro que pareça disposto a nos acompanhar por alguns minutos.

A boa notícia é que tenho conseguido chegar onde preciso. Boa parte da humanidade se esforça para que a gente pense o contrário, mas, pelo tanto que já andei, posso dizer que tem muita gente boa por aí, disposta a gastar um pouco de tempo para que os outros consigam chegar mais longe.

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