Linha de Frente

É no hospital que as histórias de vida começam e terminam

Linha de Frente - Gerson Salvador
Gerson Salvador

Haverá porvir

Filho gestado e nascido na pandemia foi mensageiro da vida que se impõe

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Dois adultos, homem e mulher, com faceshield e roupa hospitalar, carregam um bebê
Luís, nascido durante a pandemia, conhece seus avós - Gerson Salvador, acervo pessoal

Em dezembro de 2019 algo extraordinário aconteceu longe de Wuhan, em nossa casa. Depois de alguns anos de conversas mais ou menos tranquilas, resolvemos ter nosso terceiro filhote. Naquele momento ainda não ouvíamos rumores sobre o porvir, e quando apareceram duas linhas na fita do teste que compramos na farmácia, celebramos.

Começamos 2020 aspirando novos ares, Denize cursando pós-graduação em terapia familiar eu, enfim, matriculado na escola de roteiro audiovisual. Daria um filme? Daria!

Isso porque enquanto as células de nosso filhote se multiplicavam, o novo coronavírus se espalhava no mundo. E eu, que pensava que teria um ano mais focado na escrita, fui puxado para o meio do cenário da emergência. Especialista em infectologia, veterano da pandemia de influenza A H1N1, não poderia me furtar e não me furtei.

Logo no começo da pandemia fui infectado. Ela, com nosso bebê na barriga, passava o final de semana numa atividade da pós. Eu, com os outros dois embolados, acordei no meio da noite com febre de 39,5ºC, calafrios, cento e quarenta batimentos cardíacos por minuto. Olhei as crianças dormindo, serenas. Confesso algum desespero controlado com exercício respiratório e algumas gotas de dipirona. Denize felizmente não foi infectada, minha filha mais velha foi, mas teve um quadro quase assintomático.

Ela organizava o mundo: duas crianças nas aulas on-line, dezenas de estudantes e residentes, e incontáveis pessoas alcançadas por suas intervenções nos meios de comunicação. Nossas crianças vibravam ao verem a mamãe na televisão falando sobre prevenção da Covid-19. Eu, sem clone, passava noites e noites no hospital.

Papai, você gosta mais de seus pacientes do que de seus filhos? Papai, você não é o único médico daquele hospital!

Poucos leitos, muitas lágrimas. Poucas possibilidades terapêuticas, muitas mentiras. Ondas sequenciais de morte formavam um tsunami epidêmico.

De dentro de Denize a vida transbordava. Em setembro de 2020 eu respirei ao ver nosso filho nascer, após um trabalho de parto comprido, Luís nasceu sem intercorrências, e sorriu assim que viu a luz, e os olhos da mamãe. Nos períodos mais difíceis as crianças nos lembravam onde estavam as nossas almas.

Não foi fácil nascer isolado. A vovó materna o tocou depois de uma semana isolada em casa. A vovó paterna e o vovô que moram no bairro ao lado lhe pegaram no colo após três meses, cheios de paramentos. Olhos marejados observados através da faceshield.

Apesar dos desafios, Luís cresce sereno, amoroso e comunicativo. Chama pelos irmãos e eles inventam as brincadeiras mais bonitas. Quando a gente diz que o ama, ele responde com um beijinho. Ainda bem, não perdemos a capacidade de beijar e dar carinho.

Ontem Luís fez dois anos, em um momento em que os novos casos de Covid-19 diminuem em patamar internacional, e a imunização, apesar de muitas iniquidades, também avança. Eu olho para ele brincando e agradeço por sua existência, principalmente por ter me propiciado esperança no porvir. Haja vida e haja porvir!

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