Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira

Entre o luto e a poesia

Casa das Rosas (SP) oferece curso gratuito de poesia sobre luto e luta

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escritora atrás de lamparina sob quadro

A escritora Wyslawa Szymborksa em seu apartamento conhecido como "gaveta", em Cracóvia, abril de 1966. Fundação Szymborska/Divulgação

São Paulo

Ao procurar iniciativas sobre luto, uma amiga disse que o lugar mais acolhedor que encontrou foi um curso de escrita criativa. Por mais que não fosse focado diretamente no assunto, enxergou ali espaço para viver seu processo de luto.

Cada pessoa irá lidar com esse sentimento de uma forma. A literatura não é a única, mas pode ser um dos caminhos. Embora eu seja escritora e jornalista, não sou especialista no assunto, mas divido com vocês algo que aprendi entrevistando a escritora Cidinha da Silva:

"Mais que o exercício de uma função, a literatura nos oferece isso como dádiva, como possibilidade de expansão da alma, da percepção, e aí, a gente vai se nutrindo, crescendo, ampliando possibilidades de leitura e de interpretação do mundo".

A escrita é meu espaço mais seguro desde a infância, seja por meio de diários ou outros papéis escondidos pela casa. A literatura expandiu minha alma, como sugere Cidinha, dentro das dores do luto. Me nutriu, me ajudou a crescer e ampliou minha possibilidade de ler e interpretar os lutos por outros ângulos, me ajudando a atravessar esse período.

"Faz seis anos
Uma pilastra extensa
Caiu no quintal
Espalhou
Mais cortante
Que mil espelhos
Perfura
Funda
O corpo-casa"


Este é o trecho de uma poesia que fiz quando a morte de meu pai completou seis anos. Esse refúgio poético não é um ineditismo meu. Escritores e escritoras recorreram a ele para expressar o que sentiam, tanto individual quanto coletivamente.

Sempre que leio os poemas de Wislawa Szymborska sinto a precisão de suas palavras, na dureza e dor dos esqueletos sendo arredondados para zero.

"Escreve isto. Escreve. Com tinta comum
em papel comum: não lhes deram comida,
todos morreram de fome. Todos?. Quantos?
É uma grande campina. Quanta grama
coube a cada um? Escreve: não sei.
A história arredonda os esqueletos para zero.
Mil e um é sempre e apenas mil.
Esse um, é como se nunca existisse:
embrião imaginado, berço vazio,
cartilha aberta para ninguém,
ar que ri, grita e cresce,
escada para um vazio que corre para o jardim,
lugar de ninguém na fila"


Resenhei o livro "Notas sobre Luto", de Chimamanda Ngozi, onde ela diz sobre a morte do pai. Também listamos aqui no Morte Sem Tabu uma relação com 21 livros sobre morte e luto.

​A lista de escritores que já trataram sobre o assunto é extensa. ALém das já citadas, são exemplos também Ezra Pound, Roland Barthes, Paul Valéry, Hilda Hilst, Orides Fontela, Julia Bac, entre tantos outros nomes.

A morte, assim como o amor, é um tema universal. Afinal, nós todas e todos, em algum momento, iremos atravessar algum ou alguns lutos, não apenas de mortes físicas, mas também simbólicas. A própria pandemia e o fim do mundo presumido é uma delas.


Para partilhar e propor exercícios poéticos por meio do luto, a Casa das Rosas realiza o Curso "Poesia de Luto e de Luta", que acontece nos dias 10, 15 e 17 de fevereiro, no jardim da Casa, situado na Av. Paulista, 37. A ideia surge a partir da exposição de Siron Franco, instalada no jardim da instituição, na qual o artista homenageia as trágicas perdas pela Covid-19 no Brasil.

A oficina propõe ler e discutir poetas em que o luto seja o tema central. Os participantes serão convidados a criar poemas a partir da dor pessoal e coletiva, enquanto observam a instalação de Franco. Excertos dos textos serão posteriormente expostos no mesmo jardim em que estarão as obras do artista.

Para participar, basta se inscrever por meio do link: https://www.casadasrosas.org.br/agenda/2472-poesia-de-luto-e-de-luta até sábado (5/2) para entrar na lista de espera, já que as vagas já estão esgotadas.

Para entender melhor como será o curso e o que esperar de seu conteúdo, conversamos com os professores do curso: o poeta, ensaísta e crítico literário Reynaldo Damazio e a editora de cultura e poeta Michaela Schmaedel.

Morte Sem Tabu: Como surgiu a ideia de falar de poesia de luto?

Reynaldo e Michaela: A ideia da oficina Poesia de luto e de luta surgiu a partir de um diálogo com a exposição de Siron Franco, chamada Renascimento, que está exposta no jardim do museu. O artista homenageia as vítimas da pandemia de Covid-19 e os profissionais de saúde. Paralelamente a ela, preparamos três aulas para trabalhar poeticamente o luto individual e coletivo. Como fazer um poema sobre o luto que seja original? Como não cair no sentimentalismo? Como usar bem as imagens, o ritmo, a forma e as ideias no poema? Para isso, vamos falar de alguns conceitos de Ezra Pound, de Roland Barthes, de Paul Valéry, de Wislawa Szymborska, de Friedrich Nietzsche e de Freud, sobre o luto, especificamente. Na segunda parte das aulas, vamos ler poetas que trabalharam a temática, como Hilda Hilst, Orides Fontela, Julia Bac, Rodrigo Lobo Damasceno, Danez Smith, entre outros.

Morte Sem Tabu: Na opinião de vocês, houve um crescimento desse tema nos últimos anos? Ou sempre tivemos a poesia ligada ao luto? Como enxergam isso?

Reynaldo e Michaela: O luto, assim como o amor, é um dos grandes temas da poesia, sempre foi. Talvez agora, pela fase mundial de tristeza e perdas que estamos vivendo, reparamos mais nas produções artísticas com esta temática - e até procurando mais por elas para dar vazão a esta dor particular e coletiva que vivemos durante a pandemia.

Morte Sem Tabu: Para quem o curso é destinado? O que vão aprender?

Reynaldo e Michaela: A oficina é gratuita e indicada para todas as pessoas, poetas ou não. Basta ter vontade de escrever e pensar sobre o tema. O objetivo do curso é dar alguns preceitos básicos que estão presentes na construção de um bom poema e ampliar as possibilidades do poema de luto com a leitura de autores que trabalham de diferentes maneiras o tema. No final, os trabalhos dos participantes ficarão pendurados junto da exposição de Siron Franco.

Morte Sem Tabu: Para vocês, pessoalmente, qual é a importância de falar sobre luto?

Reynaldo e Michaela: A importância de falar sobre o luto - e escrever sobre ele - é que só assim conseguimos elaborar um pouco as nossas perdas e transformá-las. Isso não significa que estarão curadas, mas talvez encontrem, no poema, uma outra maneira de existir.

Morte Sem Tabu:Poderia citar algum exemplo de poesia nesse sentido para nossas leitoras e leitores?

Reynaldo e Michaela: Um exemplo de poema que vamos trabalhar: "a orca J35 empurrou com a cabeça o seu filhote morto por 17 dias no mar. os cientistas ficaram preocupados com a saúde da orca, preocupados que pudesse se machucar. os cientistas não entenderam. os cientistas estão preocupados com a reprodução da espécie enquanto J35 empurra seu filhote morto. os cientistas não entenderam nada. o filhote viveu somente 30 minutos, os cientistas acham que a orca criou um laço emocional. enquanto isso, J35 empurra seu filhote. os cientistas ainda não entenderam. há 2.190 dias empurro o seu corpo no mar, mãe, e não sinto peso algum, tampouco tenho medo de me machucar. os cientistas não entendem" (Julia Bac, em Duas Mortes)

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