Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente câncer

Câncer: verdades difíceis demais para serem ditas em voz alta

Expectativas de pacientes com câncer avançado: quando a esperança é ilusão

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Pesquisadores Cynthia Araújo e Peter Wise
Cynthia Araújo entrevistou o pesquisador Peter Wise em junho de 2018, na França - foto pessoal

Quando crianças, aprendemos que os seres vivos são aqueles que "nascem, crescem, se reproduzem e morrem". E mesmo assim esse verbo não emplaca, né… morrer.

Em uma das melhores obras sobre medicina que já li, Wrong Medicine, algo como Medicina Equivocada, Schneiderman e Jecker apresentam uma estimativa feita pelo médico e pesquisador Thomas Chalmers, de que menos de um a cada mil novos tratamentos introduzidos por ano demonstram-se inequivocamente bem-sucedidos. Ele ressalva da estatística as descobertas da penicilina para pneumonia, da vitamina B12 para anemia perniciosa, da insulina para acidose diabética e uma ou duas outras situações na história inteira da medicina.

Apesar de vivermos muito mais hoje, graças a invenções como a vacina e aos determinantes sociais da saúde, como saneamento básico e melhores condições de alimentação e moradia, nós continuamos adoecendo. E morrendo.

Eu sempre pensei sobre a morte, mas desde que minha mãe adoeceu, dez anos atrás, a morte passou a ser minha companheira. Eu vivo como vivo, estudo o que estudo e escrevo o que escrevo, porque tenho a morte em perspectiva.

Sei que ela está ali, na curva da estrada, como já disse Fernando Pessoa. Isso vale para mim e, o que é muito mais doloroso, para todas as pessoas que eu amo. Foi com esse pensamento que iniciei minha pesquisa de doutorado, oito anos atrás.

Resolvi aprofundar as suspeitas que tinha quando fazia meus processos judiciais como Advogada da União na Advocacia-Geral da União. Eu pretendia investigar se medicamentos diariamente solicitados por pacientes com cânceres metastáticos perante o Judiciário tinham a ver com o que chamamos de direito à saúde, que é constitucionalmente assegurado no Brasil. Ou se, na verdade, estávamos falando de algo diferente. Esse algo diferente eu chamei de direito à esperança. Direito a uma esperança de cura ou melhora de longo prazo- direito este que, por razões jurídicas teóricas e normativas, concluí que não existe.

Já tinha ouvido o médico e então coordenador do Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde do Hospital das Clínicas da UFMG, José Luiz Nogueira, falar em um evento para juízes que aqueles pacientes iriam morrer, com ou sem tratamento. Olha, com esses medicamentos que o senhor leu aqui, o paciente vai morrer. Todos. Com ou sem o medicamento. Não tem mágica, não tem jeito, são pacientes com câncer em estádio avançado, metastático, péssimas condições e que grande parte desses medicamentos é feita para resgate. E muitos deles [medicamentos], como nós vimos, pioram (...), o paciente pode morrer por causa - ele deveria morrer- mas ele pode morrer também por causa do medicamento.

O que ele disse não chegou a me causar surpresa, porque eu já estava percebendo isso. Mas seguia espantada com o fato de que os processos continuavam chegando com as mesmas alegações de que aqueles pacientes precisavam de determinado medicamento com urgência, ou iriam vir a óbito. Com o fato de que algo tão impactante parecia escondido da maior parte das pessoas.

Os médicos sabiam o que estavam dizendo? Os advogados sabiam? Os pacientes tinham entendido o propósito do tratamento? Se tivessem entendido, gostariam de começar ou continuar?

Durante o exame de qualificação no doutorado, um professor me disse uma frase muito dura: "acho que a sua tese tinha que vir com um alerta na capa. Não é qualquer um que está preparado para ler o que está escrito aqui".

Embora eu não esteja dizendo nenhuma novidade, nada que já não tenha sido intensamente abordado em estudos científicos, isto está longe de ser abertamente falado.

Em 2003, os pesquisadores Gordon e Daugherty publicaram um artigo chamado "Hitting you over the head", algo como te acertando na cabeça, na revista Bioethics, uma das mais importantes publicações de bioética. Eles diziam que as opções de tratamento disponíveis para pacientes com câncer avançado – cânceres metastáticos em geral – são limitadas e têm, na melhor das hipóteses, o potencial de benefícios terapêuticos marginais.

Em 2016, o médico aposentado do Imperial College School of Medicine, Peter Wise, revisou a literatura sobre as drogas oncológicas para pacientes com câncer metastático e publicou o artigo "Cancer drugs, survival, and ethics" no BMJ, uma das revistas médicas mais respeitadas do mundo. Nele, Wise demonstrou a baixíssima efetividade das drogas no tratamento dos cânceres avançados (sobrevida global de até três meses), incluindo os tumores mais prevalentes no mundo e as drogas aprovadas pelas principais agências até 2014.

Em 2020, o onco-hematologista americano Vinay Prasad publicou uma obra paradigmática sobre os estudos das novas drogas oncológicas. Em Mallignant, Prasad demonstra que o desfecho comumente apresentado por oncologistas para justificar a prescrição de medicamentos, a chamada sobrevida livre de progressão, não tem apresentado relação com o aumento da sobrevida global. Em outras palavras, o paciente não vai viver mais em razão do aumento da sobrevida livre de progressão.

Não existe forma fácil de dizer que a grande maioria dos pacientes com câncer metastático não tem prognóstico de cura ou sobrevida longa. Mais do que isso, a maior parte dos pacientes irá morrer de seus cânceres em tempo relativamente curto.

Isso não quer dizer que uma parte- significativa em casos de câncer de mama, por exemplo- não viverá mais tempo que o esperado. Algumas pessoas viverão muito tempo (mais do que cinco anos), com ou sem tratamento, sem que seja possível estabelecer relação de causalidade entre a sobrevida acima da expectativa e eventual tratamento, por exemplo. Eu mesma conversei com uma paciente com câncer de mama metastático que participou da pesquisa de um remédio conhecido para esses casos, o Trastuzumabe, vinte anos antes.

Não há problema algum em acreditar que você viverá muito mais do que a maioria. O problema é acreditar que isso decorrerá de um tratamento cujo aumento de sobrevida global esperado é de dois ou três meses, e seguir fazendo esse tratamento, apenas porque espera dele o que ele não pode oferecer.

Quando vou a um médico ou uma médica e eles me receitam alguma coisa, deveriam explicar detalhadamente os motivos: se e quanto estou doente, o que acontece se eu me submeter àquele tratamento e o que acontece se eu não o fizer.

Deveriam. Na prática, sabemos que o que mais acontece é acatar a prescrição de alguma coisa, qualquer coisa, como se fazer algo- tomar um remédio, fazer uma cirurgia, um procedimento- fosse sempre melhor do que não fazer.

Mas nem sempre é.

Durante o doutorado, conversei com quase cinquenta pacientes com câncer avançado, em Belo Horizonte, no Brasil, e em Hamburgo, na Alemanha. Quase todos estavam fazendo quimioterapia – e alguns poucos estavam na expectativa de fazer.

Estudos importantes e de largo alcance já haviam demonstrado que a maior parte dos pacientes com cânceres metastáticos não compreendem que não podem ser curados. Na minha pesquisa, percebi que isso pode ser bem pior: mesmo os pacientes que entendem que seus cânceres são incuráveis podem acreditar que suas doenças não os matarão, desde que se mantenham em tratamento, o que, infelizmente, também não é verdade. A essa ideia dei o nome de enquanto há quimioterapia, há vida.

Questionários apresentados por Cynthia Araújo a pacientes com câncer avançado durante pesquisa de doutorado em 2018
Questionários apresentados por Cynthia Araújo a pacientes com câncer avançado durante pesquisa de doutorado em 2018 - foto pessoal

Embora a pesquisa fosse qualitativa, acho importante registrar que apenas 2 pacientes no Brasil e 1 na Alemanha demonstraram compreender que os propósitos dos tratamentos aos quais se submetiam não era cura ou longevidade.

Eu já tinha lido sobre expectativas equivocadas de pacientes em fim de vida. Já tinha visto isso nos processos judiciais, nas discussões de saúde. Foi o que, afinal, me levara até ali. Mas nada teria me preparado para conhecer os planos para a década seguinte, de pessoas que eu sabia que dificilmente estariam vivas em alguns anos.

É da boa compreensão sobre o que um determinado tratamento pode ou não fazer por nós que devemos partir para tomar as nossas decisões sobre ele. As pessoas precisam ser tratadas com dignidade e não existe dignidade na desinformação. Não existe dignidade em iludir.

Da forma como eu vejo, o desconhecimento do prognóstico tirou dessas pessoas as chances de viverem os seus presentes sabendo que o futuro não era uma probabilidade. Pode ser que isso não fizesse diferença na vida de alguns. E pode ser que fizesse toda a diferença na vida de muitos. Sabemos que muitos tratamentos têm efeitos colaterais que tornam insuportáveis mesmo atividades simples da vida.

O legado que queremos deixar pode ser integralmente alterado quando percebemos que o tempo para fazer isso está se esgotando. E o fim da vida é tão vida quanto tudo que aconteceu até ali. Pode, inclusive, constituir a principal parte da biografia de alguém.

É por isso, inclusive, que prefiro exaltar a importância de se falar em vida com dignidade até o fim, e não em "morte digna". Para que isso se torne realidade, é essencial o acompanhamento de equipes de cuidados paliativos desde o diagnóstico de doenças ameaçadoras da vida, mesmo que com bom prognóstico.

Uma pessoa que passa meses ou até anos da sua vida em cuidados paliativos, exclusivos ou não, não está tendo (só) uma morte digna. Está tendo um fim de vida digno.

Os cuidados paliativos não significam "o que resta pra fazer quando não há mais nada a fazer", muito pelo contrário. Sua missão é garantir que os pacientes tenham a melhor vida possível, dure ela quanto tempo durar.

E, diferente do que muita gente acredita, não é necessário interromper tratamentos ativos, como a quimioterapia, para iniciar esses cuidados- os quais enxergam a pessoa por trás do paciente e aliviam seus sintomas de diferentes ordens. Mas porque os pacientes terão uma melhor compreensão do seu prognóstico e, muitas vezes, porque poderão considerar melhor suas prioridades, frequentemente interromperão essas terapias mais cedo.

Os motivos para os equívocos dos pacientes sobre o que esperar da evolução de suas doenças são variados. Alguns deixaram claro que escolheram acreditar nas próprias verdades, independentemente do que lhes havia sido contado. Mas em muitos casos, ficou evidente que a má comunicação dos oncologistas havia sido determinante. Como é obrigação dos médicos obter consentimento de seus pacientes para tratá-los, informar e comunicar bem são deveres, que demandam técnica, e podem, inclusive, gerar responsabilização. O referenciamento precoce desses pacientes para os cuidados paliativos, em que essa tarefa de comunicar bem é aspecto central, é, assim, o melhor caminho.

Sabemos que é da natureza humana a ideia de fazer tudo diante de um diagnóstico de doença grave. E temos uma ilusão compartilhada de que a medicina sempre terá alguma solução que permita cura ou melhora de longo prazo.

Mas operar milagres ou tentar alcançar resultados que as tecnologias disponíveis não promovem não é trabalho do médico. Ao contrário, ao médico compete adotar o firme compromisso de enaltecer os limites do que sua profissão pode fazer, e não estimular equivocadas crenças de que a ciência é infalível.

De todas as pessoas com quem conversei na pesquisa, apenas um homem alemão disse expressamente que sua vida estava chegando ao fim. Que sabia que estava nos seus últimos dias.

Foi uma longa conversa. Ele contou das suas filhas, da sua passagem pelo Brasil, do seu trabalho. Contou que a vida tinha sido boa. Que não esperava ter vivido tanto tempo – mais de um ano – depois de um diagnóstico de câncer de pâncreas, um dos piores.

"Eu queria chegar até o Natal".

Talvez eu tenha me espantado com a sua assertividade. É estranho ouvir alguém dizer que seu tempo está acabando. Uma sensação que não sei definir, como se, de repente, o mundo todo fosse uma abstração, um filme de que fazemos parte.

"Não, o Natal está longe. Eu gostaria de ver a minha neta nascer. Ela nasce em maio".

Nós estávamos em abril e foi assim que eu entendi que ele esperava pela morte em breve. Que sua ideia de futuro talvez terminasse em um mês.

Não que uma pessoa não deva ter plano algum para o caso de sobreviver mais tempo, claro. Muitos pacientes com doenças graves, e que se espera que morram em até um ano, irão sobreviver mais. O problema é ter apenas esses planos, especialmente quando são feitos para um futuro que existe depois da doença, depois da melhora, depois do tratamento.

Qualquer momento que não seja o agora é incerto, e isso vale para todos nós, doentes ou não. A diferença é a previsibilidade. Muitas pessoas que são plenamente saudáveis hoje também não terão amanhã – ou não mais terão as pessoas e possibilidades no seu amanhã. Alguém que esperava viver mais 50 anos vai sair de casa daqui a pouco e ser atropelado em um acidente fatal. Em 2020, milhares de pessoas chegariam a 2021, não fosse um vírus potencialmente mortal para a minoria delas.

Eu não esperava, em 2012, que a minha mãe estivesse viva em 2021. Enquanto ela continua aqui, seu médico, o saudoso dr. Atos, morreu, subitamente, em 2014, aos 66 anos. Célia, sua cuidadora nos primeiros dias pós-AVC, morreu pouco tempo depois de nos conhecermos, vítima de um câncer que ela havia acabado de descobrir, ainda antes dos cinquenta.

Gosto sempre de pensar naquela música que diz "mas enquanto estou viva, cheia de graça, talvez ainda faça um monte de gente feliz". Que não morramos antes do tempo, ainda em vida; que façamos nossos planos, se assim quisermos, mas não porque estamos projetando um amanhã improvável.

Que façamos nossas escolhas com base na verdade e na autonomia que merecemos- estas sim, nossas por direito. Quaisquer que sejam elas, terão sido muito corajosas.

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