Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

Um dia no hospice: lugar para viver até o último dia- e morrer

Meu relato de um dia em um hospice na Alemanha

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Se o lema do Ocidente do século XXI é a dignidade humana, ela precisa existir até o último sopro de vida. Certo? Inconscientemente, esta foi a afirmação que tentei confirmar na minha visita ao "Hospiz: brücke" de Bremen/Alemanha, na última quinta-feira.

A experiência que vivi lá dentro está gravada apenas no que eu imagino que seja a minha alma. Não está na mente, porque foi sentida, através dos olhos, dos ouvidos, do nariz, das mãos. Eu vi, ouvi, cheirei, toquei. Não podendo racionalizar, deixei que apenas o coração cuidasse das impressões. Acho que deu certo. Saí de lá cheia de tristeza, mas muito mais cheia de amor.

Esse é um trecho do relato abaixo, que escrevi quando visitei o Hospiz:brücke, um hospice cujo nome, em português, significa ponte, passagem.

Hospice nem sempre significa o lugar para onde se vai para receber cuidados, alívio de sintomas e morrer, ante a terminalidade de uma doença. Embora haja certa complexidade linguística no uso do termo, especialmente em português, a cultura de cuidados por trás de pacientes em fim de vida também pode receber esse nome.

Eu particularmente não gosto, porque esses cuidados são sempre sobre vida, mesmo que o fim dela. Mas o lugar físico chamado hospice- e que é bastante comum fora do país- realmente é um lugar para onde se vai para viver até o último dia- e morrer.

No próximo dia 24, faz dois anos que publiquei o livro Existe direito à esperança? Saúde no contexto do câncer e fim de vida, a partir da minha pesquisa de doutorado.

Quero fazer um texto especial para a data e publicar aqui, pela primeira vez, sobre esse mergulho no mundo de doença e fim de vida que ocupou a maior parte da minha vida de 2014 a 2020. Foi ele que me fez, em novembro de 2016, conhecer essa casa para os que morrem, em Bremen, na Alemanha.

Foto do Hospiz:brucke
Foto do Hospiz:brucke - Divulgação

A vida é o que acontece com você enquanto você está ocupado fazendo outros planos

Tenho lido muitos livros sobre doença e morte. Leio os médicos falarem sobre a preocupação dos homens com a dignidade no momento da morte. Penso em quantas vezes já ouvi alguém dizer "ainda bem que morreu dormindo", "ainda bem que morreu sem dor", "foi um alívio sua morte, porque estava sofrendo muito".

Há algum tempo, pergunto-me sobre o que seria ter dignidade nos momentos anteriores à morte. A morte certa não parece ajudar muito àqueles que têm também como certo o momento da morte. Falo aqui das doenças terminais.

O movimento do hospice (em alemão, hospiz) começou na década de 1970. Trata-se de um local para onde se vai para morrer. Repita para entender: ir para morrer. A entrada ali é a aceitação de que o momento da morte certa chegou. Ou chegará – de um a três dias, de oito a doze, quem sabe em algumas poucas semanas.

Se o lema do Ocidente do século XXI é a dignidade humana, ela precisa existir até o último sopro de vida. Certo? Inconscientemente, esta foi a afirmação que tentei confirmar na minha visita ao "Hospiz:brücke" de Bremen/Alemanha, na última quinta-feira.

A experiência que vivi lá dentro está gravada apenas no que eu imagino que seja a minha alma. Não está na mente, porque foi sentida, através dos olhos, dos ouvidos, do nariz, das mãos. Eu vi, ouvi, cheirei, toquei. Não podendo racionalizar, deixei que apenas o coração cuidasse das impressões. Acho que deu certo. Saí de lá cheia de tristeza, mas muito mais cheia de amor.

O que me levou a esta visita foi uma tese de doutorado por fazer, uma amizade do tamanho do mundo, as circunstâncias. Faltasse uma dessas três e eu não teria vivido uma das principais experiências da minha vida. Sei que ela continuará sendo uma das principais até o último dia.

Em um dos últimos livros que li, "How we die: Reflections on Lifes’s Final Chapter" (Como morremos: Reflexões sobre o último capítulo da vida), o cirurgião Sherwin Nuland fala da dignidade da morte como a dignidade da vida vivida. Gostei da ideia para mim: se eu morresse hoje, deixaria uma vida de planos a concretizar que vejo do mesmo tamanho da vida de planos concretizados. Mas tornaria muitas mortes indignas: como dignificar a morte de uma criança bem pequena? Como dignificar a morte de um criminoso contumaz? Como dignificar a morte daqueles que ainda esperam o momento de a vida de verdade começar?

Nasceu em 1985, disseram sobre uma das hóspedes que chegava no dia da minha visita. Meu alemão não me permite entender tudo, então almejei ter escutado errado. Mas "apenas 31 anos" dissipou a dúvida. Eu tenho 32.

Ela chegou na maca, muito debilitada. O pai ao lado, um senhor, de pé, cheio de energia. E eu me identifiquei com ele, e não com ela. Mas pensava 1985. 1984.

Por que ela? Por que não eu?

Porque sim. A ideia do hospice é de aceitação. De se despir da realidade que viria, para aguardar o fim que virá. Perguntei-me algumas vezes, enquanto auxiliava em uma troca de fraldas, se ainda restava fé, esperança de algo acontecer.

Minha tese é sobre (saúde e) esperança – uma esperança de se curar, de melhorar, de superar uma doença. Isso naturalmente não existe ali na aceitação. Ali há um outro elemento, que tem a força de desalimentar todas as possibilidades: a dor – física, que pede morfina, alívio em caixas, muitas caixas de diferentes nomes que ajudei a adesivar em nome de pacientes. Daquela paciente jovem, com quem eu queria conversar, mas que dormiu logo depois que ela chegou, por volta das 15:00 – e continuava dormindo às 20:30, quando saí com casaco na mão, anestesiada, a alguns graus negativos do quase inverno alemão.

"É bom que ela durma", escuto. Dormindo ela não sente dor. O sono acelera as horas até a passagem, tão inevitável quanto a dor que ela muitas vezes sente acordada.

Fracassada a tarefa de falar com a hóspede nova, empenhei-me com outra nova hóspede na casa dos 60, 70 – a doença nunca deixa saber ao certo. Achava que ela pudesse querer conversar, quem sabe alguém para ouvir. Ela chorava, falava, chorava. A esta altura, a missão acadêmica que me levara ao hospice tinha sido guardada no mesmo lugar da insignificância dos meus projetos perante os últimos minutos, horas ou dias daqueles que já não podem mais ter projetos. Eu queria apenas oferecer a minha humanidade a quem tinha perdido grande parte dela.

"Estou aqui neste lugar, hospiz", ouvi enquanto saía do quarto para deixar a senhora conversar ao telefone com o amigo que pretendia visitá-la. Sentei na poltrona da reflexão, lendo mensagens de carinho aos hóspedes anteriores. Todos agradeciam pela vida vivida e eu voltei a pensar na dignidade. Nenhum lamento de que foi pouco demais, cedo demais. Estes certamente estão nas páginas vazias.

Entravam e saíam parentes. A partir deles, ia conhecendo um pouco mais daqueles pacientes terminais que aceitaram. Esperava familiares abatidos, que deixassem aqueles quartos com lágrimas nos olhos e desesperança.

"Você volta amanhã?", escutei algumas vezes. Não, não volto. Mas estou torcendo para você voltar. Amanhã. E depois de amanhã. E depois de depois de amanhã. E no mês que vem também.

Chegaram os visitantes que haviam telefonado. Fui para outro quarto, o mais bonito de todos, embora todos fossem enormes e agradáveis. Uma paciente entre a mais nova e a mais velha, com o marido e a filha. A generosidade deles com a minha presença preenchia o quarto. Eu não sabia direito o que falar. O que se fala perto de alguém que nunca mais vai dar uma volta no parque? Que talvez assista o programa de hoje na televisão, mas provavelmente não assiste o episódio da semana que vem? O que se fala para alguém que não tem o que nós comumente chamamos de futuro?

Mas eles sabiam. Eles demonstravam interesse genuíno no meu papel ali, mesmo que eu já o sentisse como nenhum. Eu me perguntava onde estava com a cabeça para achar que minha busca por conhecimento sobre vida e morte tinha alguma relevância perto de vida e morte em si. Eu pensava em sair e entrar de novo, sem qualquer pergunta por fazer e carregando apenas afeto.

Não houve esposos, filhos ou amigos com ar de desesperança. Não houve revolta, nem raiva. Houve toda a dignidade que eu imaginei oferecer, de volta para mim.

Não sei ainda qual papel a minha visita desempenhará na minha tese; não estudei as formalidades para inseri-la, não fiz nenhuma entrevista, não perguntei cuidadosamente questões elaboradas. Talvez, oficialmente, ela não possa virar parte da minha metodologia de pesquisa. Mas a experiência estará em cada linha do que eu escrever.

A ideia de ir ao hospice era humanizar o meu trabalho. Por ora, encontrei um significado para a dignidade que eu procurava: esvaziar a mente para preencher o coração.

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