Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

Os sonhos não envelhecem

Musical conta a história do Clube da Esquina

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Foto do elenco em uma das últimas cenas do musical Os sonhos não envelhcem
Musical Os sonhos não envelhecem - Cynthia Araújo

No último domingo, assisti ao musical Os sonhos não envelhecem, sobre a história do Clube da Esquina, baseado no livro homônimo de um de seus integrantes, Márcio Borges. Para não criar falsas expectativas, adianto que escrevo este texto como fã emocionada.

Eu não sou uma pessoa que leva a sério explicações místicas, mas gosto de observar as coincidências. Embora tenha sido publicado em 2002, só conheci o livro do Márcio Borges em abril deste ano. Eu já havia dividido com as amigas Camila Appel e Jéssica Moreira o meu sonho de entrevistar Milton Nascimento sobre a composição de Travessia, uma das músicas da minha vida. No dia em que vi a obra Os sonhos não envelhecem, tinha certeza que abriria na página que falasse sobre Travessia. E assim foi.

Tida como a canção que mudou os rumos da música popular brasileira, Travessia ganhou o segundo lugar no Festival Internacional da Canção, em 1967. A letra é de Fernando Brant, um dos principais parceiros de Milton Nascimento- que, em um primeiro momento, houvera se comprometido com Márcio Borges a compor apenas com ele.

Não sei dizer quando ouvi Travessia pela primeira vez. Sei que, assim como Gonzaguinha, pensei que é a música mais bonita que eu já escutei.

Mas só entendi o quanto em 2001, quando na missa de formatura do ensino médio, foi emocionadamente cantada por uma aluna, ex-namorada de um colega que havia morrido dois meses antes. "Me esquecendo de você" foi gentilmente trocada por "com saudade de você".

Travessia se tornou o hino do luto para mim. Demorei algum tempo para conseguir alcançar a nota de (meu caminho é de) peeeee-dra. Aprendi a tocar no piano e, desde então, gravei algumas vezes para amigos e familiares enlutados. "Quando você foi embora, fez-se noite em meu viver".

Recentemente, escrevi em um livro sobre fim de vida- e que depois de uma crítica literária, perdeu justamente esta parte- que, de tempos em tempos, eu penso no que me faltaria se eu morresse daqui a um ano. Penso se vivo com a intensidade máxima todos os amores que tenho. Penso se deixei os registros que podia com o tempo que tive. Penso nos lugares por conhecer e nos conhecidos, em quantos momentos eu achei que esse momento valeu a minha vida e eu tive uma vida boa. Penso nos livros que li e nos que ainda quero ler. Penso nas pessoas que amaria conhecer. E penso no sonho que eu tenho para o caso de eu descobrir que tenho uma doença grave e vou morrer em breve: cantar a música Travessia com Milton Nascimento.

Quando era criança, lá no início da década de 1990, meu marido cantava em um coral de Divinópolis que acompanhou o Milton algumas vezes. Eu sempre digo que ele não dá o devido valor ao fato de já ter cantado com a voz de Deus.

Soube do musical Os sonhos não envelhecem logo depois de comprar o ingresso para o encerramento da última turnê de Milton Nascimento, que decidiu que chegou a hora de se despedir dos palcos. A última sessão de música termina no próximo dia 13 de novembro, no Mineirão. A última vez em que estive lá também foi para ver o Milton, em dezembro de 2019, meu último show pré-pandemia. Lamentei muito não ter ouvido Travessia.

O musical Os sonhos não envelhecem é uma celebração à música e à amizade de Milton, Lô, Márcio e Marilton Borges, de Fernando Brant, Beto Guedes, Toninho Horta, Wagner Tiso. O diretor Dennis Carvalho descreve o musical como "um espetáculo sobre amizade e um movimento artístico que entrou para a história". Fernanda Brandalise, que adaptou o livro para o teatro, diz que ele fala sobre "amizade e poesia, fruto da esperança inabalável de que a arte pode transformar o mundo em algo melhor".

Eu tinha dez anos quando ouvi Clube da Esquina n. 2 pela primeira vez, na novela Quatro por Quatro. "Porque se chamavam homens, também se chamavam sonhos e sonhos não envelhecem". Logo depois, meu pai me apresentou a uma outra música, que dizia o contrário. "Father and son", do compositor Cat Stevens, diz que você talvez ainda esteja aqui amanhã, mas pode ser que seus sonhos não.

Sempre que penso em uma música, penso na outra e me pergunto se os sonhos envelhecem. Pelo sim, pelo não, tento realizar os meus o mais rápido possível, que é para não correr o risco de morrerem antes- os sonhos ou eu.

É difícil definir a emoção que quem cresceu ouvindo as músicas do Clube da Esquina sente ao assistir a Sonhos não envelhecem, especialmente depois de ler o livro do Márcio Borges. É quase como fazer parte da história também. Você se sente ali dentro, crescendo junto com eles. Isso é particularmente especial depois que o álbum Clube da Esquina foi eleito o melhor disco brasileiro da história.

O espetáculo trata o repúdio à ditadura militar com seriedade, com direito a menção à Dilma Roussef- e aplausos da plateia. O racismo sofrido por Milton Nascimento é abordado de forma impactante em dois momentos. No início, em que um episódio quase o faz desistir da música, e, ao ser perguntado se não sairia do país como Caetano e Gil, que se exilaram. Milton responde que já pensou sobre o assunto, mas que ficará. Márcio se preocupa, diz que estão sendo perseguidos e ele reage: "quando foi que eu e os meus não fomos perseguidos neste país?".

A parceria entre Milton e Fernando Brant tem destaque. No início, Brant, estudante de direito e leitor de Guimarães Rosa, tenta se esquivar da música. Mas Milton diz que vê nos olhos dele o seu dom para a poesia- "e eu nunca me engano".

Fernando Brant diz, então, que compor é como álcool, você perde o controle.

E perde mesmo. Eu me identifiquei bastante com essas palavras. Compor, música ou textos, sai do nosso controle. De repente as palavras vêm e você precisa dar vazão a elas, na hora que for. Elas te acordam, te sacodem e impedem que você continue fazendo o que estava fazendo até que elas saiam. Compor é como dar à luz, o musical lembra.

A atuação de Daniel Haidar me fez ter aquele sentimento de "como eu queria ter tido a chance de conhecer você, Fernando Brant". "Quisera eu também ter conhecido o Fernando", o Daniel me disse. "Apesar disso, os Brant me abraçaram completamente e me fizeram sentir da família. Uma honra sem tamanho trazer de volta a figura desse ser humano ímpar. Quero fazer com que as pessoas se apaixonem por ele e pela obra dele assim como eu me apaixonei".

Depois do espetáculo, eu enviei uma mensagem também para o Rômulo Weber, elogiando a atuação e perguntando como havia sido o processo para interpretar o autor da obra "Os sonhos não envelhecem". Ele me disse que cresceu ouvindo Bituca, Lô Borges e Beto Guedes, porque sua mãe, Marcia Weber, sempre foi uma entusiasta da música brasileira- além de sua maior incentivadora. Rômulo já tinha lido o livro do Márcio Borges há alguns anos, quando estudou canto com o professor de música brasileira Pedro Lima, trabalhando canções do Clube da Esquina. "Mas a leitura que eu fiz para o musical foi diferente, com um nível de complexidade muito maior. Esse foi um laboratório difícil e o livro foi fundamental, porque para a maioria dos personagens, a gente não tinha muito material em vídeo para pegar as referências, até os trejeitos, o gestual mesmo".

Eu havia pensado um pouco sobre isso enquanto assistia. O Milton Nascimento do Tiago Barbosa é perfeito, conseguimos perceber a mudança do artista junto com ele, as diferenças de cada fase da vida. E embora ele certamente seja o protagonista do espetáculo, é pelos olhos de Márcio Borges que a história acontece. E eu não conheço muito como foi o Márcio na juventude, nunca vi vídeos, mas posso dizer que o carinho do Rômulo com o personagem é uma das coisas mais bonitas que eu já vi acontecer no teatro. A emoção com que ele terminou a noite do último dia em Belo Horizonte me fez pensar que era o Márcio emocionado ali também.

O ator e cantor Tiago Barbosa e o ator e cantor Rômulo Weber, para o musical Clube da Esquina
O ator e cantor Tiago Barbosa e o ator e cantor Rômulo Weber, para o musical Clube da Esquina - Léo Aversa

Aliás, o elenco é todo incrível- e isto é muito pessoal-, mas, além dos dois personagens principais, fui arrebatada pelo Lô Borges de Cadu Libonati e pela Elis de Elá Marinho. Por alguns segundos, você se pergunta se a Pimentinha não voltou e está ali bem a sua frente.

Eu não tenho competência para fazer crítica de arte, mas, como fã emocionada, apenas uma coisa me incomodou. Não sei se o destaque para as questões com a bebida em um dos derradeiros atos teve muito propósito em uma celebração de vida e arte tão bonita. Na exaltação da amizade e do amor, talvez não houvesse espaço para lembrar que, nem sempre, as relações são um mar de rosas.

Talvez seja a forma de nos fazer entender algumas das letras que entoamos há décadas, conferindo os significados que fazem sentido para nós sem saber exatamente por que foram compostas. De "eu queria ser feliz, invento o mar, invento em mim o sonhador" a "longe se vai, sonhando demais, mas onde se chega assim". Quem sabe, alguns sonhos realmente envelheçam.

Mas nem todos.

Tomando lugar em 2022, o musical é, com certeza, além de uma maravilhosa homenagem ao Clube da Esquina e à música mineira, uma manifestação política pela democracia- e, não por acaso, um fora Bolsonaro ao fim da última apresentação em Belo Horizonte foi inevitável.

Rômulo Weber me disse que abrir a temporada em Belo Horizonte foi muito especial para todos os artistas, que eles ficaram maravilhados com a acolhida calorosa dos mineiros. "A gente não media o tamanho desse carinho"- por eles e pelo Clube da Esquina, que segue atual, cinquenta anos depois.

Como (mais ou menos) disse o Lô Borges, "tô adorando essa história de estar vivo até hoje". E sonhando.

O musical Os sonhos não envelhecem segue para Ipatinga/MG, com apresentação no dia 2 de setembro, no Centro Cultural Usiminas. De 9 de setembro a 23 de outubro, estará no Teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro. As últimas apresentações já agendadas são no Teatro Liberdade, em São Paulo, de 28 de outubro a 18 de dezembro.

No instagram: @musicalsonhosnaoenvelhecem

Também estamos no Instagram, segue a gente lá! @mortesemtabu_ @cynthia0000 @camilaappel @jessicaapmoreira

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.