Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

Música nos velórios: uma forma de abraço

Qual canção você imagina tocando no seu funeral?

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Flautista Erick Soares toca flauta no cemitério em Niterói
Flautista Erick Soares toca flauta no cemitério em Niterói - Fotografia Josilei Souza

Já tem um tempo que eu acho que morte combina muito com música.

Aliás, nós temos uma playlist do Morte sem tabu no Spotify, que você pode conferir aqui.

No mês passado, a Bárbara, amiga muito querida, perdeu a mãe, Bete, e me pediu para cantar uma música em sua missa de sétimo dia. And now, the end is near, and so I face the final curtain... "E agora, o fim está próximo, e eu encaro a cortina final".

Embora eu sempre ofereça minha cantoria aos amigos, Sinatra me parecia ambicioso demais, mas de jeito algum eu negaria o pedido. Depois da missa, fui para a casa dos meus pais e perguntei que música eles e minha irmã gostariam que eu cantasse caso eles partam antes.

Minha mãe, que acompanha e apoia minhas pesquisas sobre fim de vida há muito tempo, disse "que cantar em velório o que, se eu estiver presente, não deixo". Já meu pai e minha irmã, que não gostam "desses assuntos", logo indicaram suas preferências.

"Quando eu não puder entrar mais na avenida...", cantarolou ele. "Quero logo Every little thing she does is magic", ela respondeu sem qualquer modéstia.

Recentemente, o músico Erick Soares, bacharel em flauta e mestrando em música nos mandou uma mensagem interessante sobre música no mercado pós-vida. Sim, essa expressão existe.

Ele disse que toca em velórios em dois cemitérios e vê como as pessoas têm dificuldade de lidar com a morte. Fiquei muito interessada, porque já fui a um número significativo de velórios em mais de cinco cidades do Rio de Janeiro e de Minas Gerais e não me lembro de já ter visto músicos profissionais tocando.

Para ser sincera, só me lembro de ter ouvido música nessas cerimônias uma vez, ao fim do enterro de um tio querido do meu marido, o tio Telmo. Vinha do celular de alguém, bem despretensiosamente, para honrar o seu time: uma vez Flamengo, Flamengo até morrer.

O Erick foi super receptivo ao meu pedido de entrevista. Acho que nós, que trabalhamos com a morte de alguma forma, gostamos muito de encontrar nossos iguais.

Ele me contou que, no início de 2020, a empresa para quem ele trabalha começou a prestar serviços em velórios e ele passou a tocar no cemitério da Penitência, na zona portuária do Rio de Janeiro. Mas com o início da pandemia, Erick ficou impossibilitado de tocar por bastante tempo, já que seu instrumento é de sopro e não era possível tocar de máscara.

Em agosto de 2021, depois de tomar a primeira dose da vacina contra a Covid-19, ele voltou a tocar na Penitência. Mas a empresa firmou um contrato com o cemitério Parque da Colina, de Niterói, onde ele mora, e passou a tocar lá.

Erick disse que nos dois cemitérios, o procedimento é semelhante. A cerimonialista aborda a família e informa que há o serviço de música. Em alguns cemitérios, esse serviço é contratado à parte. Mas no que ele trabalha atualmente, o serviço de música está incluído.

Ele e outros músicos que se revezam tocam duas ou três músicas ao fim dos velórios e atendem outros pedidos da família, como a leitura de mensagens. Depois, os coveiros entram, fecham o caixão- eles preferem chamar de ataúde-, que segue para o sepultamento ou para o crematório.

Escultura de anjo no Cemitério da Penitência, no Rio de Janeiro
Escultura de anjo no Cemitério Parque da Colina em Niterói - Foto pessoal

Conversamos um pouco sobre essa forma diferente de fazer música:

CYNTHIA: Eu acredito que música tem espaço em qualquer ocasião e acho isso especialmente verdade em momentos de dor. Como é ser músico em velórios?

ERICK: Quando eu fiz faculdade de música, eu estudei para estar nos palcos, para tocar música em outro contexto. A gente está acostumado a fazer parte de um evento bonito, alegre, a ser o pano de fundo de algo como um casamento, uma ópera. No velório, a gente está ali a serviço do conforto dos corações. A música vem para tornar o momento difícil menos difícil. Há outro significado ali.

CYNTHIA: Como as músicas costumam ser escolhidas?

ERICK: Nós vemos coisas muito bonitas. A música permeia ou fecha histórias de amor. Uma viúva que pede para tocar a música do dia do seu casamento, uma família que pede a música que seu ente querido tocava ao piano. A música é um traço afetivo muito grande na nossa sociedade e nem sempre as pessoas se dão conta disso.

CYNTHIA: É comum as pessoas rejeitarem os serviços musicais?

ERICK: Cada velório é um velório, cada família é uma, cada um lida com a morte e com as músicas que tocam ali de uma forma. Nem sempre eles concordam que a gente toque, mas muito mais gente aceita do que rejeita. No cemitério em que não há custo extra para esse serviço, é muito raro a família não querer.

CYNTHIA: É possível separar a pessoa do músico da pessoa que está fazendo parte da cerimônia de encerramento de uma vida?

ERICK: Eu toco ao lado do caixão, frente a pessoas absurdamente emocionadas. Você não tem distanciamento da plateia. As pessoas fazem silêncio para ouvir a mensagem que a música traz. E acontecem coisas muito lindas. Uma vez eu toquei "Como é grande o meu amor por você" e eu percebi que cada um estava ali cantando, como se fosse um coral. Eu percebi que a música era o que as pessoas podiam dar em homenagem à pessoa que morreu e também aos familiares enlutados, em uma espécie de abraço coletivo.

Tem dias que, emocionalmente, é muito difícil. A gente vê muita coisa nos velórios, é uma escola para a vida. Há velórios em que mais de 200 aparecem, mas que a família diz que ninguém foi visitar durante uma internação no hospital. Mas aí a pessoa morre e tem 20 coroas de flores, enquanto estão ali papeando sem grande sentimento.

Depois que eu comecei esse trabalho, eu penso em como é verdade a frase da Anne Frank de que ‘os mortos recebem mais flores que os vivos, porque o remorso é mais forte que a gratidão’. Isso é o que eu mais vejo. Uma sociedade que não sabe lidar com a morte, nunca parou para pensar, não consegue conversar sobre morte. E eu vejo muito egoísmo também. Pessoas que preferiam que alguém seguisse vivo, sem pensar no que seria melhor para quem estava às vezes muito doente, sem autonomia.

Falei para o Erick que, quando eu morrer, quero que toque Travessia. Aliás, se eu souber que estou perto de morrer, quero cantar Travessia. Minha vida é muito musical, a morte há de ser também.

Depois de ouvi-lo falar, tenho ainda mais certeza disso. A música pode ser um abraço que nos falta muitas vezes. E eu quero muito que meus amores se sintam abraçados quando chegar a hora da minha cortina final.

Se você quiser compartilhar suas histórias com a gente- inclusive as músicas que imagina tocando no seu funeral- estamos no Instagram também: @mortesemtabu_ @cynthia0000 @camilaappel @jessicaapmoreira

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