Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente Twitter

Outras dores das pessoas com útero

E a culpa por querer um pouco de paz

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"Um dia, mulheres com muita cólica, endometriose, não serão obrigadas a fazer nada nesses dias de dor". Li esse tweet da Tatá Werneck recentemente e fui transportada para um dia muito específico em 2020, pouco depois de descobrir que estava grávida.

Estava há uma década sem vomitar e o ato sempre foi muito traumático para mim. Sensação de pré-morte. Todas as vezes e cada uma. Pânico.

Quando os enjoos matinais começaram, fiquei realmente apavorada. Como é que eu ia sobreviver se tivesse que pré-morrer cinco, seis vezes, todo dia, durante nove meses?

Não foi o caso. Eu enjoava bem mais do que vomitava. Ainda assim, passava muito mal. Tive que começar a dormir com um pacote de torradas ao lado da cama, porque era a única coisa que me aliviava. Acordava enjoada, comia a torrada, dormia mais um pouco.

O início da pandemia foi especialmente difícil. A virtualização do meu trabalho já era uma realidade, mas eu ainda conseguia contornar. De repente só sobrou a tela do computador e minha deficiência visual precisou se adaptar. Eu tinha que trabalhar muitas horas por dia para compensar as dificuldades.

Grávida. E enjoada.

Um dia fiquei meio irritada e comecei a pensar quem foi que teve a bendita ideia de dizer que gravidez não é doença.

Fiquei me perguntando se a popularização dessa ideia pretendia ajudar com que grávidas não fossem logo dispensadas de trabalhos recém conquistados. Vamos disseminar a informação de que mulheres (cis) não dão mais trabalho só porque engravidam! Vamos lutar por direitos iguais!

Iguais?

Bom, gravidez não é doença, mas alguns dos sintomas que a gente tem se assemelham aos de doenças graves.

É impossível querer que uma pessoa continue trabalhando do mesmo jeito que antes morrendo de dor. Muitas vezes achando que vai desmaiar a qualquer momento.

Imagina passar por isso todo mês. TODO MÊS.

Tweet de Tatá Werneck com o texto “Um dia, mulheres com muita cólica, endometriose, não serão obrigadas a fazer nada nesses dias de dor”
Tweet de Tatá Werneck - Reprodução Twitter

Antes de abrir os comentários do tweet da Tatá, eu já imaginava o que leria ali: depois reclamam de ganhar menos, de não ser convidada pra ser a chefe, quem mandou ser feminista.

Escolhi um que acho paradigmático: "Aí você nunca mais trabalhará e culpará os homens donos de empresas por preconceito. Até empresárias mulheres contratarão só homens, mas a culpa nunca será delas".

Culpadas pelo próprio sistema reprodutivo. Culpadas se funciona, culpadas se há problemas. Culpadas se engravidam, culpadas se não engravidam. Culpadas se não querem engravidar. Culpadas se são vítimas de abuso. Sempre culpadas.

Culpa. Ah, essas pessoas com útero, a culpa só pode ser delas de acharem que merecem uma pausa para sentir sua dor com um pouco de paz.

Mas merecem. A Declaração de Montréal, desenvolvida em setembro de 2010, afirma como direito fundamental o acesso ao controle da dor. Alguém ousaria dizer o contrário?

Existe um Projeto de Lei recente em trâmite perante o Congresso Nacional (PL 1249/22) que busca garantir licença de três dias consecutivos, a cada mês, às mulheres que comprovem sintomas graves associados ao fluxo menstrual.

Não consigo passar para a próxima frase sem apontar que, naturalmente, essa licença, se aprovada, não poderia se resumir às mulheres e precisaria ser estendida a todas as pessoas que menstruam. Aliás, acredito que se as pessoas entenderem que expressões como pessoas que engravidam, que menstruam, que têm útero, fazem sentido exatamente nesses contextos -como criação de políticas públicas inclusivas-, evitaremos perdas desnecessárias de tempo e energia com discussões inexistentes.

Na Justificação do Projeto, apresentado pela Deputada Federal Jandira Feghali, afirma-se que "toda menstruação vem acompanhada de contrações uterinas, o que provoca cólicas, mas em alguns casos estas contrações chegam a uma intensidade incompatível com a rotina profissional". Mas, para não correr risco de demissões e descontos no salário, "não são poucas as mulheres que comparecem ao trabalho mesmo apresentando quadros agudos de náuseas, vômitos, diarreia, fadiga, febre, dor nos seios (mastalgia) e dor de cabeça".

A proposta também menciona um projeto espanhol semelhante. Nem todo mundo concorda com os benefícios da medida, especialmente por uma suposta ênfase na patologização do feminino. De minha parte, penso como a vice-presidenta do Movimento Democrático de Mulheres da Espanha, Ana Mata del Real: "a estigmatização das mulheres se dá sempre pelo simples fato de ser mulher". E, de todo modo, nunca, em tempo algum, acharei normal banalizar ou subestimar a dor.

Outra informação interessante: em setembro deste ano, foi aprovada a Lei do Estado do Rio de Janeiro n. 9.864/22, que institui o Programa "Endometriose Sem Trauma", com o objetivo de incentivar as pessoas jurídicas a oferecerem, voluntariamente, até 3 dias de licença-endometriose a todas as funcionárias que apresentarem quadro de endometriose profunda.

Não fiquei muito otimista quanto aos benefícios práticos dessa lei, devo ser sincera. Mas é bom ver que o assunto está sendo pautado. Quem sabe, Tatá, o dia realmente chegue.

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