Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente câncer

'Estou em paz, fiquem também', diz mulher que morreu, em carta

Juliana Carvalho Lopes tinha câncer e deixou carta para ser lida em seu funeral

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… desmistifiquem o câncer ou outra doença grave. Desmistifiquem a morte, afinal, ela é o maior clichê da nossa vida. Meu objetivo, desde o meu diagnóstico, foi desmistificar a doença, o processo e o fim da vida. Acho que funcionou, vocês entenderam e eu vivi os últimos anos com dignidade e alegria apesar do câncer. E como eu sempre repetia - com todo respeito a dor e a maneira que cada um tem de lidar com seus perrengues - é possível, sim, ser feliz com câncer. Eu fui.

Mão segurando uma caneta e escrevendo em um caderno
Carta de despedida - web stories - Unsplash

Ontem, li a carta que Juliana Carvalho Lopes, uma mulher paranaense que morreu em decorrência de câncer no intestino, deixou para ser lida em seu funeral.

E tive um sentimento que talvez não faça sentido para a maioria das pessoas, que costumam ler essas histórias apenas lamentando seu fim. Como se todas as histórias não caminhassem para a morte afinal.

Meu sentimento não foi o de "poxa, tão nova" ou "que pena que não se curou", como li por aí. Foi o de "eu gostaria de poder deixar uma carta assim se ou quando estiver na fase final de uma doença grave" - sempre incluo esse "quando", porque o "se" faz parecer que não é uma possibilidade real. É. E eu penso nela frequentemente.

Em sua carta, Juliana diz que teve uma vida bem vivida, que a felicidade esteve presente mesmo em momentos difíceis. Mesmo com e apesar do câncer.

Quem sabe no lugar de pensar "eu não quero ter câncer de jeito algum", uma frase que vai ficando cada vez mais difícil de se concretizar, especialmente quando vivemos muito tempo, a gente se alegre com a frase "eu vivi os últimos anos com dignidade e alegria apesar do câncer".

Às pessoas amadas, Juliana pede que se apeguem às lembranças, aos momentos de alegria, risadas e trocas. "Construam nossas memórias. Espero ter deixado material pra isso. Para carregarem um pouquinho de mim em cada um de vocês".

Quer coisa mais linda do que pensar no material que deixamos para que as pessoas tenham memórias que nos mantenham vivas dentro delas?

"Se eu tenho pouco para viver, eu não vou ficar morrendo todo dia. Eu vou me ocupar de viver". Márcio Antunes, marido da Juliana, disse que essas foram as suas palavras após o diagnóstico.

E eu me peguei pensando: quantas vezes não passamos a semana, o mês, o ano esperando por um momento de ser feliz? Vivendo a vida diariamente como se a grande hora de aproveitar e realmente viver ainda estivesse por vir.

Sei que isso pode não servir para todo mundo. Tenho minhas questões de saúde mental - ainda escreverei sobre elas - que me fazem entender bem o que é ter que esperar o tempo passar para ser feliz de novo. Também tenho os privilégios de classe que me fazem poder filosofar sobre viver melhor o agora, porque não preciso me preocupar se minha filha terá o que comer na hora do almoço.

Ainda assim, essa pausa para pensar na vida que estamos vivendo pode valer para muita gente, para muitos momentos.

Ter a morte no horizonte pode nos fazer viver de uma forma que não vivemos quando achamos que ainda temos muito tempo pela frente. Tempo para realizar as coisas que queremos, para deixar nosso legado. Deixar material.

Quem acompanha o blog pode já ter lido sobre minhas reflexões a partir de uma pesquisa com pacientes com câncer sem prognóstico de cura e vida longa.

Eu costumo dizer que não é que uma pessoa não deva ter plano algum para o caso de sobreviver mais tempo. Muitos pacientes com doenças graves, e que se espera que morram em até um ano, irão sobreviver mais. O problema é ter apenas esses planos, especialmente quando são feitos para um futuro que existe depois da doença, depois da melhora, depois do tratamento.

Viver depois.

Qualquer momento que não seja o agora é incerto, e isso vale para todos nós, doentes ou não. A diferença é a previsibilidade. Muitas pessoas que são plenamente saudáveis hoje também não terão amanhã – ou não mais terão as pessoas e possibilidades no seu amanhã. Em 2020, milhares de pessoas chegariam a 2021, não fosse um vírus potencialmente mortal para a minoria delas.

Então, por mais clichê que pareça, a vida é mesmo agora. Como disse a Juliana, ainda mais clichê é a morte.

Eu não sei o que o futuro me reserva. Espero que, quando chegar a minha hora, se eu tiver a oportunidade de despedida, consiga colocar em prática tudo que aprendi nos últimos anos.

Mas a gente nunca sabe o que vai sentir quando passar pelas coisas que apenas projeta. Então, hoje, exalto as palavras da Juliana, alegro-me que ela tenha tido a oportunidade de ser feliz.

Juliana está vestida de branco, com um adereço carnavalesco branco na cabeça
Juliana festeja o carnaval, alegre com e apesar do câncer - Arquivo pessoal

E de, ao perceber que seu tempo estava chegando ao fim, viver, deixar memórias e até esta tocante e honesta carta de despedida:

"A minha hora chegou. E tá tudo bem, gente. Tive a oportunidade e o privilégio de me preparar pra ela. Me redescobrir e receber o melhor das pessoas. Essa é uma despedida honesta e, absolutamente, grata. A despedida de uma vida linda, cheia de sentido, de amor e das pessoas mais especiais que eu poderia ter tido o privilégio de conviver. Minha família, minhas amigas e amigos e tanta gente, que apesar da pouca intimidade, se fez tão presente, com gestos, palavras, orações, força.

Durante o tratamento, passei por muitas fases aqui dentro de mim. E, felizmente, encontrei as minhas próprias ferramentas psíquicas para lidar com o câncer e com as pessoas da minha vida. E fui sustentada pela força, o afeto, a parceria e o amor de vocês, cada um à sua maneira. E passei a tentar compreender os sentimentos e emoções das pessoas que me cercam, me atrevendo a entender e experimentar, da forma objetiva, racional, mas também, empática, o que sente o outro. Pra mim, funcionou, espero que pra vocês também. Uma certeza, morri cheia de gratidão no coração e cercada das melhores pessoas.

Aliás, se eu puder deixar um pedido, desmistifiquem o câncer ou outra doença grave. Desmistifiquem a morte, afinal, ela é o maior clichê da nossa vida. Meu objetivo, desde o meu diagnóstico foi desmistificar a doença, o processo e o fim da vida. Acho que funcionou, vocês entenderam e eu vivi os últimos anos com dignidade e alegria apesar do câncer. E como eu sempre repetia - com todo respeito a dor e a maneira que cada um tem de lidar com seus perrengues - é possível, sim, ser feliz com câncer. Eu fui.

Um recadinho para quem me acompanhou no trecho: Sei humildemente que sentirão saudades da minha presença, das minhas patifarias, da nossa convivência, eu já estou... Mas, espero que se apeguem as nossas pequenas lembranças, nossos momentos de alegria e risadas, nossas trocas. Construam nossas memórias. Espero ter deixado material pra isso. Para carregarem um pouquinho de mim em cada um de vocês (só a parte boa!), mas com alegria, sem drama. Vocês sabem que drama nunca foi meu forte.

Li, certa vez, que "o luto é o preço do amor". Eu só posso agradecer o tanto de amor que vocês me dedicaram. E desejar que vocês, meus amados e amadas, vivam esse luto, do jeito mais leve e alegre que vocês puderem, assim como eu levei a vida.

Sabe qual é a maior homenagem que vocês podem fazer a mim? É honrar as suas próprias vidas, com honestidade nas relações, alegria, integridade, empatia, amor e muita diversão, claro! Aliás, depois da minha despedida, se juntem e vão tomar um chopp, ouvindo um samba e falando bem de mim. O da minha mãe é escuro.

Eu deixo chorarem a minha partida, faz parte. Mas, acima de tudo, celebrem a minha vida. Estou em paz. Fiquem também."

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