Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Minha filha sabe o que é morrer

Histórias da vida real: a primeira conversa sobre morte com a minha filha

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Desde que percebi que minha filha é muito atenta e gosta de saber e entender tudo que está sendo dito perto dela, ainda bem pequenininha, tive curiosidade sobre como seria a nossa primeira interação sobre morrer.

Conversas, livros, reflexões sobre a morte são muito importantes na minha vida e, considerando que passo quase o tempo todo perto da Beatriz, é inevitável que ela se torne parte disso.

Há alguns meses, recebi o livro "O pato, a morte e a tulipa", do escritor e ilustrador alemão falecido no fim de 2022, Wolf Erlbruch, (re)lançado pela Companhia das Letrinhas.

Li sozinha, li com a Beatriz. Ela se interessou por algumas partes, não se interessou pelo fim da vida. Entendi que não era o momento.

Bebê com casaco azul segura livro "O pato, a morte e a tulipa" junto com sua mãe
Cynthia lê o livro "O pato, a morte e a tulipa" com sua filha Beatriz - Foto pessoal

O momento aconteceu hoje, naturalmente, no chão do meu quarto. "Neném pode brincar?", ela perguntou apontando para um conjunto de chá em miniatura, que trouxemos de viagem. "Pode, filha, mas não pode deixar o Nhoque pegar, que se ele engolir, ele pode morrer. E aí não vai ter mais cachorrinho, porque quando as pessoas morrem elas vão embora e não voltam nunca mais". Percebendo seu olhar de interrogação, complementei: "mas elas ficam guardadas para sempre no nosso coração".

Sim, eu usei o "nunca mais". Tanto estudo… e essa comunicação improvisada, para dizer o mínimo. Ainda nem terminei de remoer o dia em que falei para uma amiguinha com seus 5 anos que o presunto que estava comendo era como a Peppa Pig. E agora isso.

Não foi exatamente proposital. É que o nosso basset hound engoliu uma chupeta no fim do ano passado e teve que ser operado de emergência. Para nossa sorte, ele estava no hotel em que fica quando viajamos – onde moram sua esposa e 4 filhos – e a responsável é uma competente veterinária. Desde então, a Beatriz sabe que precisa ter muito cuidado com as coisas que ficam ao alcance do irmão canino. Mas, por algum motivo, talvez porque estivéssemos falando de coisas que não são propriamente brinquedos, pareceu importante especificar que aquelas xícaras, do tamanho dos seus dedinhos, não podiam ficar perto do Nhoque.

Beatriz me olhou com seriedade e disse: "não pode morrer". Enquanto guardava de volta os pequenos objetos, balbuciou um "guarda, guarda", não sei se na caixinha do chá ou no coração. Eu tentaria explicar mais alguma coisa, mas o Nhoque apareceu e ela estava decidida a protegê-lo dizendo "sai, sai", "não pode, não pode".

Voltei para o livro do pato, que, depois do susto de perceber que a morte está sempre rondando, diz que até que ela é simpática. Essa representação da morte, ilustrada em um desenho, faz com que a gente se aproxime dela. O escritor e pianista Igor Reyner diz que a estratégia de humanizar, personificar a morte, como também faz Mauricio de Sousa com sua Dona Morte, permite um canal de diálogo e até uma relação afetiva.

"O pato, a morte e a tulipa" é um dos livros mais bonitos que já vi. Não um dos livros mais bonitos sobre morte, não um dos livros infantis mais bonitos. Um dos livros mais bonitos do universo inteiro de livros que conheço. Mas, talvez, ele funcione melhor para crianças, porque os adultos muitas vezes se concentram apenas nos textos. E Erlbruch fala através das palavras, mas muito do que ele quer dizer está em suas tocantes ilustrações. A própria tulipa, que faz parte do título, não encontra uma só menção por escrito, embora seja uma das almas da obra.

"Fazia tempo que o pato tinha aquela sensação.

- Quem é você, e por que fica andando atrás de mim?"

A morte é bem transparente:

"- Estou sempre por perto, desde que você nasceu".

Trecho do livro "O pato, a morte e a tulipa", em que a morte fala para o pato que está sempre por perto
Trecho do livro "O pato, a morte e a tulipa" - Divulgação

O diálogo me remeteu às cartas de Sêneca para Lucílio: "ficamos abalados tão logo acreditamos que a morte está próxima de nós. De fato, de quem ela não está próxima, à espreita em todo lugar, a cada momento?".

Perto de fazer 2 anos, o que mais espero para Beatriz é que entenda, mas demore a viver, a realidade de que morremos todos, nós e os nossos cachorrinhos, mães, pais, tios e avós. Morrem, contra toda a lógica e no mais absurdo das possibilidades, até mesmo os filhos. Abraçar a morte não nos livra dos nossos lutos, mas não abraçá-la pode tornar ainda mais difícil o caminho até ela. E nada nos livra dele.

Pela personalidade que apresentou até aqui, consigo imaginá-la respondendo como a criança da conversa que viralizou outro dia:

- Ela morreu?

- Virou estrelinha.

- Morreu então.

No início do Morte sem Tabu, Camila Appel escreveu sobre como falar do assunto morte com as crianças, a partir da pesquisa da psicóloga especializada em perdas e luto Lucélia Paiva. Sobre o "virar estrelinha", lembrou que não há problemas no uso de metáforas para falar sobre a morte, mas que é aconselhável utilizar uma linguagem realista que permita a elaboração do luto.

A literatura infantil pode ser uma grande aliada na comunicação com as crianças sobre temas como mortes e perdas. Além do livro de Wolf Erlbruch, gostei da abordagem de "Pode chorar, coração, mas fique inteiro", de Glenn Ringtved e Charlotte Pardi; "A Morte da Lagarta", de André Rodrigues, Larissa Ribeiro, Paula Desgualdo e Pedro Markun; "Tartaruga", de Angela Cuartas e Dipacho; e "A Espera", de Ilan Brenman e Seta Gimeno.

Lucélia Paiva recomenda diversos livros, tais como "A operação de Lili" e "A Montanha Encantada dos Gansos Selvagens", de Rubem Alves; "Dona Saudade", de Claudia Pessoa; e "A História de uma Folha", de Leo Buscaglia.

A psicóloga afirma que falar sobre morte com as crianças é fundamental. A criança está disposta a saber a verdade, quem evita o assunto são os adultos, lembra Camila. Estudos sugerem que a criança deve compreender a universalidade da morte: todo ser vivo morre; e a irreversibilidade: quem morre não volta mais. Nunca mais.

Quem sabe, no fim das contas, eu não tenha me saído tão mal.

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