Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente maternidade

Dia dos Avós: fui a última pessoa a ver a minha viva, aos 4 anos

Se soubesse quão mágico seria meus pais se tornarem avós, teria sido mãe antes

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Eu fui a última pessoa a ver a vó Lourdinha viva.

Estávamos em sua casa apenas eu e minha mãe. Eu tinha 4 anos e ela tinha uma barriga de onde sairia minha irmã pouco mais de um mês depois.

A ideia de morrer em casa, tão agradável para a maioria das pessoas ao redor do mundo, tornou-se um pesadelo para minha mãe. Ela foi correndo buscar o carro, na esperança de que desse tempo de levar minha avó para o hospital. Não deu.

"Passei meses com medo de que ela tivesse sido enterrada viva".

Sempre me lembrei de segurar a mão da vó Lourdinha, deitada em uma cama, nos seu suspiros finais. Então minha lembrança pulava para pessoas carregando um saco preto que não sei se existiu mesmo, foi a minha imaginação ou uma memória fabricada.

Meu pai trabalhava no Rio, nós morávamos em Petrópolis. Minha mãe ligou para o tio Zezinho para avisar que eu precisava de resgate. Alaíde, que ajudava minha mãe comigo, foi quem apareceu primeiro.

Lembro bem do trajeto com ela no ônibus para casa. Acho que até gostei da experiência. Não tinha entendido que tinha acabado de perder minha vó. Não sabia que minha mãe tinha acabado de perder sua mãe. Aos 29 anos.

Hoje imagino o tamanho da sua dor. Quando a minha mãe quase morreu, eu tinha 28. Naquele momento, eu pensava que meu possível luto duraria meses. Talvez anos. Na verdade, acho que nunca me recuperaria de uma perda tão precoce e inesperada. Mas 10 anos depois da morte da vó Lourdinha, quando a minha mãe falava quanto sentia sua falta, eu não entendia. Pensava: "mas já faz tanto tempo, quem sabe como ela estaria agora?".

Também não foi aos 28 que eu entendi o tamanho dessa perda. Na verdade, acho que entendi no dia 26 de julho de 2021. Minha filha tinha 48 dias e eu encomendei duas cestas para encaminhar em seu nome. Era o primeiro dia dos avós dos seus avós.

Os pais da minha mãe e os pais do meu pai já tinham morrido quando minha mãe começou a me contar detalhes da sua infância e juventude. De como a vó Lourdinha trabalhava no armazém do Pereirão, depois de começar na Leiteria Central e ficar 14 anos na papelaria Esteves, ainda na década de 1950, em Petrópolis-RJ. Uma mulher à frente do seu tempo, mas que não conseguiu escapar de um casamento que a fez adoecer.

Eu nasci seis anos depois da separação dos pais da minha mãe. Ela conta que buscava a vó Lourdinha em casa de carro toda vez que saía. Mesmo que fosse só pra me levar ao colégio e voltar.

Na primeira foto, criança de quase 2 anos, vestida de blusa branca, saia jeans e meia calça segura uma boneca na mão direita e a mão da avó, vestida de blusa estampada, calça jeans e tênis, com a mão esquerda. Na segunda foto, criança de um ano, vestida com casaco vermelho, está no colo da avó, de blusa xadrez, calça jeans e tênis.
Eu e a vó Lourdinha, ao longo de 1985 - Arquivo pessoal

"Ela adorava andar de carro", minha mãe sempre diz. Lembro de passar na casa dela, no centro de Petrópolis, e ir para um supermercado que tinha perto. Lembro de comprar biscoito com ela e ficar muito feliz com isso. Eu ia para o seu prédio brincar com outras crianças e às vezes saía de lá já dormindo, carregada pelo meu pai para o carro.

Sempre gostei de visitar essas memórias e, principalmente, de escutar as histórias. Mas eu não entendia, eu não podia entender, o que significava, para minha mãe, ter a companhia da sua ao me levar pra escola. De nos ver, divertidas, procurando biscoitos no mercado.

Costumo dizer que, se eu soubesse o quanto seria mágico ver os meus pais se transformarem em avós, eu nunca teria tido dúvida de que queria ser mãe. Provavelmente teria feito isso antes.

Quando descobri que estava grávida de 7 semanas, falei com a minha mãe e o meu pai que talvez eles tivessem um neto. "Como é isso de talvez?", meu pai perguntou. "Vamos esperar pelo menos 12 semanas", respondi.

Sem pensar muito, ele adiantou: "Eu não vou tomar conta do filho de ninguém". Sou casada há quase oito anos com a mesma pessoa com quem namoro há 18. Trabalhamos, temos a nossa casa e a vida bem estruturada.

A frase não fazia qualquer sentido e, ainda assim, adivinha só quem vira e mexe toma conta da neta? No fim do ano passado, encomendei duas blusas para eles. Na do meu pai, escrevi "Eu não vou tomar conta do filho de ninguém". Na da minha filha, "Filha de ninguém". Eles andaram de mãos dadas pela praia exibindo as frases sobre seus barrigões.

Dadas as limitações motoras da minha mãe, meu pai se viu obrigado até mesmo a trocar as fraldas que de ele nunca tomou conhecimento quando eu e minha irmã éramos pequenas.

Nossa relação já foi muito conflituosa. Eu custei a compreendê-lo. A tia Clara dizia que quando ele tivesse netos, mudaria. Eu duvidava.

Na verdade, acho que ele não mudou mesmo. Eu é que não conseguia ver antes o que agora vejo. Sinto no seu amor pela minha filha o amor por mim. E, mesmo que não achasse o fato de ver a minha Beatriz crescer a coisa mais maravilhosa do mundo – mas acho – minha maternidade inteira já teria valido a pena por isso.

Eu e meu marido sempre lembramos a nossa filha como ela tem sorte de poder conviver com os 4 avós. Vovó Ana (como Santa Ana), vovô Jujuba – outrora o Araujo que não pensava nem ser chamado de vovô, também conhecido como meu pai – a vovó Môn(i)ca e o vovô Dalto(n).

No que me diz respeito, a única dificuldade nisso é que, agora, tenho ainda mais medo de perder os avós da minha filha do que de perder o meu pai e a minha mãe. Por isso, o que desejo hoje e todos os dias, desde aquelas primeiras cestas, é vida longa e com saúde. Para eles e para todos os vovôs e vovós.

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