Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

Vai na Fé: por mais mortes assim

Na última quinta-feira, a personagem Dora deu seu suspiro final

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Estou sentindo a falta de você

Sonhando com seu beijo

Espero amanhecer

Tu levas as palavras

Soltas pelo ar



Sempre fui uma pessoa muito noveleira. Odiava os domingos apenas por serem dias sem novelas e choro copiosamente toda vez que tenho que me despedir da amizade unilateral que construo com personagens - como foi com a saudosa Jaqueline da Cláudia Raia em Ti-ti-ti.

O anúncio de que as gravações de novelas estavam suspensas em 2020 foi, para mim, o grande anúncio da gravidade da pandemia. Depois disso, meu espírito noveleiro não conseguiu se recuperar. Engravidei, minha filha nasceu e, mesmo com as facilidades do streaming, tenho tido dificuldade de acompanhar meus programas preferidos.

Alguns meses atrás, fiquei angustiada. Comecei a receber mensagens de algumas pessoas dizendo que a novela das 19h da TV Globo estava abordando temas que estudo, e que eu precisava assistir.

Não foi exatamente uma surpresa. Meu primeiro texto aqui no Morte sem Tabu foi sobre a novela "Bom Sucesso", escrita também por Rosane Svartman, que assina a atual "Vai na Fé". Na época, eu ainda nem era autora do blog, mas mandei mensagem para a Camila Appel dizendo que ela tinha que escrever sobre aquele enredo incrível. "Por que você não escreve?", ela me desafiou. E assim nascia "A minha novela não é a das 19h", texto que é também o primeiro em que conto um pouco da história da minha mãe.

Na época, contei que, numa possível referência a Ivan Ilitch de Tolstói, Alberto, personagem de Antônio Fagundes, dizia saber que estava morrendo e não aguentava mais o falso otimismo ao seu redor. Alguns dias depois, ele diria que "a morte lança um novo olhar sobre a vida". Escrevi que a história de "Bom Sucesso" podia nos ajudar a ressignificar a morte, mostrando esse novo olhar - para a vida vivida, para a vida por viver, ainda que por pouco tempo. Sabemos que alguns momentos podem valer uma vida inteira. E, na vida que a consciência da finitude pode revelar, podemos encontrar beleza que supere a dor do fim.

"A novela tá falando sobre cuidados paliativos, a personagem tá com câncer terminal", a minha irmã me escreveu no dia 5 de maio sobre a Dora, de Claudia Ohana. Estava embarcando pra Tunísia e não consegui dar ao assunto a atenção que gostaria, mas busquei a cena a que ela se referia: uma conversa e um afeto que, muitas vezes, só acontecem na ficção – e na realidade – com pessoas que estão percebendo a proximidade do fim da vida.

Atrizes Carolina Dieckmann e Claudia Ohana como as personagens Lumiar e Dora em cenas da novela Vai na Fé
Personagens Dora e Lumiar em cenas da novela da Globo Vai na Fé - Rede Globo

"Sempre sonhei ver essa cena. Minha mulher e a minha filha assim, unidas, felizes. Que bom que deu tempo", diz o marido de Dora, personagem de Zé Carlos Machado.

Lumiar, a filha dos dois, personagem de Carolina Dieckmann, teve a expressão de incredulidade que já vi tantas vezes nos rostos de familiares de pacientes com doenças graves. Como se perguntasse com o olhar se é possível sentir algo além de dor pela perda iminente; e por que é que a mãe ainda conseguia sorrir enquanto a filha só sentia angústia com a proximidade de sua morte.

"Quando a vida que achamos que temos, ela encurta de repente, a princípio dá um susto, dá medo. Mas depois vem um monte de aprendizado, vem o sabor das coisas, os tons do verde da natureza, é tão lindo", diz Dora.

Tempo. Viver é uma constante negociação com o tempo, aquele que já passou, o que achamos que teríamos pela frente e, de repente, não temos mais.

A sensibilidade com que Claudia Ohana fala sobre a vida me fez ter aquele sentimento de quando esquecemos que o que estamos assistindo é um personagem. Senti tristeza pelo fim da vida da Dora. Não pela sua morte, pelo evento morte. Mas pelo fim do seu viver e do que ela poderia fazer com ele.

Lembrei da primeira pessoa que entrevistei para minha pesquisa de doutorado sobre pacientes com câncer avançado. No livro que acabei de publicar — A vida afinal: conversas difíceis demais para se ter em voz alta —, escrevo que "eu olhava para ele e era doloroso pensar que o mundo provavelmente o perderia em breve". Pensava que a vida dele valia tanto, a presença dele valia tanto. Talvez, porque, como ele me disse, a ideia de que poderia partir muito precocemente o fazia tentar deixar o melhor de si para cada pessoa que conhecia. Podia não haver tempo para uma segunda chance de deixar uma imagem diferente, um outro legado.

Mas e para quem tem as segundas chances? Quando colocamos a morte em perspectiva e lembramos que, no fim das contas, viver é sempre urgente, a reconciliação com uma pessoa amada, o carinho por um bolinho de jaca que lembra a infância e até a realização adaptada do sonho de voar de asa-delta se fazem também urgentes. A vida só é o que é, porque tem a morte dentro e aquele clichê mais clichê de todos os clichês ainda é verdade: "pra morrer basta estar vivo". Para adoecer e, então, morrer, também.

Em uma cena que repercutiu bastante há algumas semanas, o médico de Dora afirma que a quimioterapia paliativa que ela ainda realiza não faz mais sentido. A personagem passa, assim, para o que chamamos de cuidados paliativos exclusivos – embora o texto use a expressão "tratamento paliativo", que, na minha opinião gera grande confusão, já que a quimioterapia paliativa é justamente um tratamento paliativo e, na maior parte dos casos, vai em sentido oposto ao que entendemos por cuidados paliativos.

"Ela tá tão magrinha, né, pai? Tá parecendo até um passarinho", a filha Lumiar diz ao pai sobre Dora, em uma cena que vi de relance na casa da minha mãe.

A coroação do processo de fim de vida em cuidados paliativos — que não se resumem a esses cuidados de fim de vida — vem com o que costumamos chamar de morte digna. Na última quinta-feira (20), em cena escrita por Mario Viana, Dora diz que seu corpo está se despedindo da vida lentamente. "E por isso posso falar o quanto a vida é enorme". Ela deseja a uma criança que ainda vai nascer a intensidade, o encantamento das primeiras vezes.

Ou, quem sabe, das últimas.

"A nossa querida Dora tá no seu limite", o médico anuncia. A filha reage: "então faz alguma coisa, vamos levar ela pro hospital". Não faz mais sentido. Ela queria morrer em casa, como muitas pessoas desejam, mas poucas conseguem, mesmo em países mais bem estruturados para os cuidados de fim de vida.

Dora morre em seus próprios termos, assim como viveu. A poesia musicada que encerra o seu ciclo, com a participação dos personagens, e, muito provavelmente, das pessoas por trás dos personagens, canta que ela voa nas asas do passarinho com que estava começando a se parecer. Suas cinzas são jogadas no lugar em que sempre quis estar - e continuar.

Foi uma das cenas mais bonitas que esta noveleira enferrujada já assistiu na televisão.

A personagem Dora, de Claudia Ohana, em cena da novela Vai na Fé, está deitada em seus últimos momentos antes de morrer
Dora morre na novela Vai na Fé - Bella Pinheiro/gshow

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