Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente Todas

Tragédia na Barra e como falamos sobre quem morre

O que nos interessa saber sobre pessoas e suas biografias?

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Mamãe, por que você escreve sobre morte? - perguntou a minha filha de 2 anos ao me ouvir contar distraidamente sobre o evento de Cuidados Paliativos de que participei ontem no Hospital Sírio Libanês para falar sobre o Morte sem Tabu.

Porque a morte faz parte da vida, filha - respondi sem qualquer convicção após ler as notícias.

Desde a manhã de ontem, penso em como abordar a execução acontecida no quiosque da Barra da Tijuca, na madrugada de quinta (5). O caso é tão chocante, que não preciso dar maiores informações para que saibam do que estou falando.

Já escrevemos outras vezes sobre a sensação de urgência que sentimos em um canal que fala especialmente sobre morte, quando situações assim acontecem. Uma cobrança interna de que nos posicionemos de alguma forma. Mas nem sempre temos algo melhor ou diferente do que já foi publicado a dizer.

Nos grupos de Whatsapp vi diversas hipóteses serem levantadas e sinto que não saberia dizer o que é factível ou o que é pura teoria da conspiração.

Mas não é sobre as linhas investigativas que gostaria de falar. Queria falar sobre as pessoas. É natural que, na era das redes sociais, muitos se sintam especialistas em segurança pública e apostem suas fichas em uma resposta ou outra. Somos vítimas diárias da violência de milícias, das polícias, da impunidade, da falta de respostas a crimes como os cometidos contra Marielle Franco. E usamos essa bagagem para apontar nossos dedos, especialmente quando as coisas parecem, curiosamente, acontecer rápido demais.

Homem branco de bigode veste camisa social, com óculos de grau pendurados, em frente a uma mesa de jantar
Marcos de Andrade Corsato, professor e médico, executado no último dia 5 de outubro, em um Quiosque na Barra da Tijuca - Reprodução redes sociais

Posso entender. Mas existe um assombro particular ao perceber que em algum momento esquecemos ou diminuímos o espaço dado às próprias pessoas que morrem. Não estou falando de um médico que estava participando de um grande evento, que é irmão de alguém e se parece com outro homem. Estou falando de uma pessoa que morreu: Diego Ralf de Souza Bomfim. E de outra pessoa que também morreu: Marcos de Andrade Corsato. De uma terceira pessoa que morreu: Perseu Ribeiro Almeida. E de uma quarta que foi baleada diversas vezes, mas está bem: Daniel Sonnewend Proença.

Médico Perseu Ribeiro Almeida
Perseu Almeida, uma das vítimas de assassinato no Rio de Janeiro ORG XMIT: LOCAL2310050851424992 - Reprodução/Redes Sociais

Pessoas. Seres humanos que perderam a vida, cujas famílias estão enlutadas. Quem são eles? Nos jornais descobri suas especialidades médicas, onde se formaram, os hospitais em que trabalhavam. Poucas palavras sobre quem foram e continuarão sendo para quem fica. O que nos interessa saber sobre pessoas e suas biografias?

Quando se escuta sobre crianças pretas mortas nas favelas, saber que eram crianças pretas não costuma bastar. Exige-se saber quem eram seus pais, se estavam envolvidos com o tráfico, se estavam no lugar errado na hora errada. Familiares são provocados a falar que eram boas pessoas, que não se envolviam com o crime. Que não mereciam morrer.

É verdade que não se exige o mesmo das pessoas brancas. Não perguntam aos familiares de médicos brancos se eles estavam fazendo algo para justificar uma execução, se realmente eram bons profissionais ou amigos. Mas, ao que parece, também não estamos muito interessados em suas histórias, em suas vidas. Analisamos semelhanças entre fotos como se fosse um jogo dos 7 erros, discutimos o policiamento do local e a vizinhança do hotel, falamos sobre a posição de câmeras de segurança. E as pessoas?

O médico Diego Bomfim, irmão da deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP), em foto com a família - @dr.diegobomfim no Instagram

Costumo dizer que tão importante quanto renaturalizar a morte como parte da vida, algo que nos é muito caro aqui no Morte sem Tabu, é não banalizar a morte. Mas quando falamos em não banalizar a morte, estamos falando em não banalizar a existência das pessoas.

Eu tenho medo de morrer de uma morte evitável, tenho medo da violência, da cultura armamentista, do Sargento Rocha e do Capitão Nascimento. Mas também tenho muito medo de a minha morte acabar se tornando a coisa mais importante que aconteceu na minha vida.

Estamos no Instagram: @mortesemtabu_ . Se você era próxima ou próximo de Diego, Marcos ou Perseu, ficaremos felizes em falar sobre suas histórias :)

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