Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Por que opinamos sobre as mortes dos outros?

Luto e as disputas de narrativas sobre as causas das mortes

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Eu estava longe de ser uma pessoa interessada em questões sobre a morte quando reparei, pela primeira vez, neste fenômeno: quando alguém anuncia a morte de uma pessoa, a curiosidade sobre a causa e as circunstâncias vem ainda antes das condolências.

Mas morreu de quê? Estava doente? Quantos anos?

Isso sempre me chamou a atenção e, embora muitas vezes eu também tenha ficado curiosa, tentava conter perguntas inconvenientes.

Já procurei algum texto que explique, tecnicamente, por que sentimos essa necessidade de conhecer as causas das mortes alheias, muitas vezes de pessoas que nem conhecemos, de quem nunca ouvimos falar em vida, mas cuja morte desperta curiosidade.

Não consegui. Mas tenho um palpite. Queremos saber do que morrem os outros para garantir que não é algo que está próximo de acontecer com a gente.

Mas estava doente? Se sim, não estou doente, não estou perto da morte.

Mas tinha quantos anos? Se é muito mais velho do que minha mãe, então ela também não está perto da morte.

Estava internado? Ufa, então a morte deu aviso prévio.

Imagem mostra a seguinte cena: em primeiro plano, numa sala com paredes cor de vinho, há à esquerda um portal de pedra e, à direita, um homem grisalho de costas; ele usa calças caqui, camisa azul e sapatos marrons e olha em em direção à porta, que tem um relógio no alto do batente, marcando 10:10; do lado de dentro da porta se vê a silhueta da morte, sob um fundo azul claro.
Ilustração de Annette Schwartsman para a Folha - Annette Schwartsman/Folhapress

Talvez seja apenas mais uma das formas que encontramos de nos afastar da realidade e nos iludirmos sobre nosso material não infinito. No fim das contas, essa curiosidade pode ser apenas uma expressão da nossa humanidade e dos nossos medos.

Mas aí chegaram as redes sociais e a amplificação de tudo que temos de pior. Nossa curiosidade, até natural, transformou-se em suposições aleatórias sobre a vida alheia. E isso torna ainda mais difícil o luto de quem fica após a morte de uma pessoa querida, cuja morte, por algum motivo, foi exposta.

Foi o que aconteceu com a família do Carlos Pereira, operário da construção civil. No último dia 25 de abril, dia do aniversário da sua filha, Ludmyla, e do seu irmão, Jean, ele sofreu um acidente de carro na estrada para Esmeraldas, em Minas Gerais. Carlos morreu na hora.

"A imprudência no trânsito é grande". "Complicado. O povo conhece os perigos dessa estrada e mesmo assim ainda abusa! Lamentável". "Aconteceu por causa de um irresponsável".

No imaginário de quem deixou os comentários, Carlos, de vítima de um acidente de trânsito fatal, passou a ser apenas mais um motorista de trânsito imprudente. A família, que já estava sofrendo imensamente com a perda repentina de um pai, filho, irmão, primo, passou a sofrer também para tentar disputar a narrativa da Internet. Na era das redes sociais, todas as mortes são disputas de narrativa.

A realidade do que aconteceu com Carlos é conhecida por poucas pessoas. Ele estava se sentindo mal, com tosse. Gravou um áudio para sua esposa, Crispina, e disse que iria ao hospital. Pegou o carro e foi.

Enquanto tentava chegar ao seu destino, teve um infarto, bateu em outro carro e capotou várias vezes. Foi a única vítima.

Dificilmente, alguém que começa a passar mal e decide ir ao hospital imagina que está prester a ter um infarto. No mundo ideal, Carlos poderia ter pedido a alguém para levá-lo. Mas, no mundo real, quase ninguém espera pelo pior.

Se tivesse imaginado que era algo mais grave, Carlos talvez agisse diferente. "Os homens raramente pedem ajuda", sua prima Jéssica me diz.

Crispina estava indo embora do trabalho quando ouviu a mensagem do marido. Ao ligar para ele para saber se já havia sido atendido no hospital, um policial rodoviário atendeu, perguntando o que ela era de Carlos. "É meu marido". O policial informou o local do acidente e não disse que Carlos tinha morrido na hora.

Selfie de Carlos com a esposa, Crispina, e as duas filhas, Ludmyla e Letícia
Carlos com a esposa, Crispina, e as duas filhas, Ludmyla e Letícia - Arquivo pessoal

Crispina e Crispiniana são irmãs gêmeas. O marido de Crispiniana, Nélio, foi ao local do acidente e recebeu a informação do óbito. Ele quem deu a notícia para Crispina. Logo depois, também começou a passar mal. O impacto da notícia acelerou outro infarto, que, segundo o médico, Nélio já estava para ter mesmo.

Enquanto Carlos era enterrado, Nélio estava em estado grave na UTI. Enquanto as duas irmãs choravam por seus maridos, a Internet discutia a culpa pelo acidente no Instagram.

Um estudo recente sobre morte e luto nas redes sociais demonstra que, embora possam ser úteis, as redes também validam narrativas que "justificam" algumas mortes, o que dificulta a elaboração do luto pelos familiares das vítimas. Já vi muito comentário horrível sendo feito contra pessoas que acabaram de perder seus maiores amores. Pais sendo responsabilizados por filhos que supostamente teriam tirado a própria vida. Lutos sendo ridicularizados, porque os desconhecidos da Internet teriam sido capazes de salvar pessoas que eles nunca viram. "Se fosse meu amigo, não teria acontecido".

As redes sociais estenderam certezas absolutas que alguns sempre tiveram sobre a vida também para a morte. Não é só o luto da família de Carlos Pereira que se dificulta. É o legado de alguém que talvez sempre tenha prezado pela responsabilidade no trânsito, pela preocupação com as outras vidas ali na estrada, no lugar em que também não imaginava encerrar a sua.

Um dos meus primeiros textos aqui no Morte sem Tabu foi sobre a morte do menino João Pedro, dentro da casa da tia, no Rio de Janeiro, com um tiro de fuzil nas costas. Nunca esqueci o desespero de sua família em tentar preservar a sua imagem, já sabendo que tentariam culpá-lo de alguma forma pelo próprio assassinato. O luto fica para depois, eu pensei.

Sei que são situações diferentes, porque a culpabilização da vítima faz parte da estratégia do aparato policial violento. Mas se não fôssemos tão naturalmente ávidos por comentar a causa da morte alheia com base em nossas próprias suposições, talvez tanto a família de João Pedro, como a de Carlos pudessem sofrer as suas perdas com um pouco mais de paz.

Indo além, penso em outra situação: por que falamos que pessoas doentes perderam as batalhas sobre suas doenças? Por que as culpamos pelo desfecho natural e inegociável de cânceres incuráveis, como se de fato houvesse uma possibilidade de vitória?

Sei que quem destila comentários inoportunos e tantas vezes mentirosos na Internet pode não se importar com os sentimentos que vão atingir os vivos, quem dirá os mortos. Mas, ainda sim, penso que a reflexão é válida. Talvez possamos nos perguntar por que queremos tanto saber e opinar sobre o papel das próprias vítimas nas causas de suas mortes. E, talvez, lembrando que isso pode dificultar muito o luto de quem fica, sejamos um pouco mais cuidadosos, nas redes sociais e fora delas.

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