Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Luto em espiral: 10 anos órfã de pai

Sinto falta de ouvir a voz do meu pai me chamando de filha

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Jéssica Moreira

Jéssica Moreira é escritora e jornalista. Coautora do Blog Morte Sem Tabu e Cofundadora do Nós, mulheres da periferia

São Paulo (SP)

Hoje faz 10 anos que meu pai morreu. Há quem diga que parece que foi ontem. Discordo. Se ontem fosse, seriam apenas 24h. Não essa lonjura concreta e cortante de 87 mil horas na camada mais profunda da pele.

São dez anos de uma distância que caminha no submerso de mim: inalcançável e desesperadora. Enlouquecedora e sem fim. São dez anos sem abraçar o Tiãozão, sem ouvir sua reza a São Jorge, sem ver seus novos cabelos e bigodes grisalhos.

Há 10 anos eu saí do tempo. Ou será que, como nos filmes, o tempo congelou num espaço em que a gente ainda existia junto? Naquele 2 de julho, às quinze pras onze da manhã, senti um frio na espinha. O corpo dá avisos daquilo que a mente não aceita. Último batimento, última consciência? Será que você se lembrou de mim? Puro egoísmo meu.

Esse tempo parou com muita dor e raiva. Quando o pai começou a sentir fortes dores pelo corpo, descobrimos que seu nível de Diabetes havia chegado a 490, ocasionando perda dos movimentos dos braços e pernas.

Uma enfermeira me esperou chegar para dizer a gravidade da situação, pois para ela eu era "mais esclarecida" que minha mãe. Isso dói até hoje. nformação é um direito que deve ser garantido independente de qualquer coisa. Um outro enfermeiro de plantão fez questão de mostrar as costas de meu pai em carne viva.Ele não me poupou de mais esse sofrimento.

Foram dias e dias dormindo no hospital. Mesmo grave, ele só conseguiu uma vaga na UTI de um hospital público depois de uma semana. Ficou ao menos dois dias inteiros no corredor. Passados dois anos, isso ainda me faz pensar no "se". E se tivesse conseguido um leito antes?

Pôr do Sol no Cemitério Dom Bosco
Pôr do Sol no Cemitério Dom Bosco, em Perus (SP). - Jéssica Moreira

O tempo parou naquele 2 de julho. E, desde então, estou tentando construir um outro tempo sem o pai. Mas não tem um dia em que não me lembre dele: metade afastada de mim, mas que também sou eu.

Na terapia, reconstruí o pai de todas as formas possíveis. Com os pedaços que tinha, criei uma infância ao Tião criança vendendo amendoim na sala de casa: a única da vila com TV. Com as lembranças dos tios e das fotos em preto e branco, inventei viagens de guidão por estradas sinuosas cheias de cruzes e livramentos.

Com os causos contados à beira do muro da casa azul, criei um malandro-pai: pilastra firme me segurando na beirada, onde ninguém poderia derrubar. Revisitei seus medos, angústias, solidão, cansaço e tanto mais que nunca disseram apenas sobre ele, mas sobre a orfã de pai que eu havia me tornado e sempre vou ser.

Viver é a melhor forma que encontrei de humanizar esse luto: rindo, chorando, abraçando a dor com todas as suas camadas. Mas também buscando amor, muito amor, dentro de cada coisa e dentro de mim.

Precisei viver muito nesses dez anos, principalmente para conviver com essa "ridícula ideia de nunca mais te ver". Essa frase, aliás, é o nome de um dos meus livros favoritos sobre luto, escrito pela espanhola Rosa Montero:

"Como não tive filhos, a coisa mais importante que me aconteceu na vida foram os meus mortos, e com isso me refiro à morte dos meus entes queridos. Talvez você ache isso lúgubre, mórbido. Eu não vejo assim. Muito pelo contrário: para mim é uma coisa tão lógica, tão natural, tão certa. Apenas nos nascimentos e nas mortes é que saímos do tempo".

Enlutados: sinto muito, mas a saudade não passa. Há felicidade na tristeza, há dor na alegria, mas não passa. Só piora. Sinto falta de usar a palavra pai e todos seus complementos: paiê, paizinho , paizão, papishow. E sinto falta de ouvir a voz dele me chamando de filha.

Mas enquanto houver memória, há eu e meu pai ouvindo Bee Gees na "arinha" e imaginando como era possível um irmão viver sem o outro, já que um dos integrantes do trio havia morrido. A gente nem sabia, mas também teria que inventar um caminho.

Um caminho que passa em te encontrar na memória, pai. No pedaço de agenda com suas letras largas olhando pra mim e Bee Gees de novo cantando alto: palavras são tudo que tenho.

São dez anos de um trabalho de formiguinha para resgatar sua história com palavras tão cruas, tão cruas, que nunca traduziram o tamanho do buraco que é a falta do pai. Poço fundo escuro que já doeu muito, hoje é chuva fina que insiste em cair pingando dia após dia.

Eu precisei encontrar o pai aqui dentro para conseguir conviver com sua ausência. Um pouco de calma, um pouco de malandragem, um punhado de fé. Me convenço que pode haver alguma felicidade nesse novo tempo que inventei.

Ressignifico e honro sua memória visitando seu túmulo no cemitério. Ligo o som do celular: "quem rezar por mim que o faça sambando, na paz do senhor", diz sua lápide. Eu, nossas lembranças, e um mar de túmulos sob o laranja do fim do dia.

Um pôr do sol idêntico àquele invernal de 2 de julho de 2014. A mãe me liga. Hoje, ela fez bolo de cenoura com cobertura chocolate. Consciente ou inconscientemente, lembrou-se de você, do doce que gostava (Leia "Luto, Comida e Afeto: a comida em forma de homenagem). A mesa continua farta. Mas "naquela mesa está faltando ele, e a saudade dele está doendo em mim".

Eu te amo tanto, que nem essas milhões de horas são capazes de diminuir isso aqui dentro. Chego aos 33 anos, sendo 10 deles em luto. Serão todos os outros também em luto. "A bença", pai.

No sexto aniversário de morte, eu fiz este poema para homenageá-lo:

A morte-viva que carrego em mim

Faz dez anos
Uma pilastra extensa
Caiu no quintal
Espalhou
Mais cortante
Que mil espelhos
Perfura, funda,
O corpo-casa
De quem ficou
Faz dez anos
Uma mancha
No pulmão, no rim
É diabetes descompensada
Avisou o médico
Corredor gelado
Hospital abandonado
Alguém ajuda meu pai?
Alguém me ajuda?
Eu sou muita nova para...
Faz dez anos
Vinte dias
Três Hospitais
33 km de casa
36 km de casa
Dois pronto-socorros
Mil horas-corredor
Vinte dias
Copa de 2014
Vuvuzela fora
Medo dentro
A perna parou
O braço parou
Eu cantava samba
Eu invadia a sombra
Sentada na poltrona dura
Queria habitar o inconsciente
Morto
Fazer nascer desse sono estúpido
O resto todo parede
Parede imunda
Surda ao meu pedido
Aquário de fazer loucos
Aquário de fazer loucos
Aquário de fazer loucos
Eu tão microscópica
Eu tão alagada em solidão
Dois de julho
Cutucada nas costas
Onze horas manhã de sol
Morri
Morri
Morri
Morri
Morri
Faz dez anos
Casa alargada
Cômodos
Galpões cheios de vazio
A casa
Tentando se sustentar em suas velhas vigas coberta por suas velhas telhas
no seu velho quintal
A pilastra que nunca mais se reergueu
A morte-viva que carrego em mim
Pai

(Jéssica Moreira)

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