Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira

O dia em que minha renovação de CNH me fez chorar

Crônica sobre uma deficiência invisível

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Aquele pernilongo está ali há alguns minutos, mas eu só percebi agora.

Estou um pouco aliviada que ele tenha me dito que podia vestir a jaqueta de volta. Será que também notou a presença do inseto? É inverno, mas as temperaturas seguem próximas aos 30 graus.

Sinto a batata da perna esquerda coçar por dentro da calça e torço para que não esteja em risco de dengue. Ando sem tempo para doenças. Já faz alguns anos que não tenho tempo para adoecer.

Cheguei aqui com medo de ser reprovada. As letras parecem embaçar mais nos últimos dias. Coloquei os óculos, os olhos andam cansados. Não sabia quanto. Tirei a foto na entrada e foi um choque. Tenho que marcar logo aquela cirurgia de correção do estrabismo. Aquela que adio há 22 anos.

- Você dirige de óculos?

- Depende.

- Não serve essa resposta.

- Dirijo de óculos quando estou mais cansada.

- Não serve.

Ele pega meu documento e nota que não tem a restrição. Mas se fizer o exame de óculos, vai ter. Quer fazer de óculos?

Tiro. Ele diz que preenchi o papel errado, mas que não vou consertar. Agora que preenchi, tá preenchido. Ele vai tomar as providências que entende cabíveis. Problema meu que acho que deficiência visual é física também.

12 por 8 a pressão. Sempre 12 por 8. No parto, 12 por 8. Com sono, 12 por 8. Pelo menos isso. Se fosse a minha mãe ouvindo aquelas coisas, tinha dado 20.

- Tem esse X aqui.

- Eu tenho visão monocular.

- Você tá dizendo, eu ainda não avaliei.

- Tive catarata congênita, na época não existia o teste do olhinho.

- Você não enxerga nada?

- Tenho o que chamam de percepção luminosa.

- Então pode não ser monocular.

Abro a boca para falar alguma coisa, mas as palavras me faltam. Lembro da primeira vez que ouvi a expressão, na primeira renovação da CNH, muitos anos atrás. "Você tem visão monocular, mas isso não é uma deficiência visual". "Não é?" "Não, a lei diz que não, você pode dirigir com o olho bom. Carro, pode dirigir carro".

O olho bom. Esse que anda embaçando as letras. Mas eu sei, todo mundo vai passar por isso, vista cansada. É que eu já tava tão cansada antes.

- Tem 20 anos que minha carteira de motorista diz que eu tenho visão monocular.

- Mas pode não ser. Você escreveu aqui deficiência física. Qual a sua deficiência, não estou vendo nenhuma.

- Não tinha opção pra deficiência visual, achei que fosse tudo aí.

- Eu não vou rasurar. Vou pegar outro papel, que precisa nesses casos.

- Não é mais fácil eu preencher outro em branco? Eu só entendi errado.

Ele começa a me falar sobre a lei. Sobre tudo aquilo que eu não sei que a lei diz. O que eu penso não importa, é a lei.

Faz as perguntas das coisas que já respondi antes. Quando pergunta se já sofri um acidente de carro, olha como se não fosse possível uma pessoa nunca ter tido um.

É advogada, tá escrito aqui. Advogada de quê? Advogada da União, respondo mais para mim do que pra ele. Volto a olhar o pernilongo e penso em quantas vezes já li as leis e as deficiências e fiz os processos das leis e das deficiências.

Sento no banquinho de ver as letras. Chuto as últimas, pequenas. Acho que errei tudo, mas ele diz que não preciso dirigir com óculos. Agora o outro olho, o que você falou que é pior.

Eu falei? Pior? Como alguma coisa que nem existe consegue ser pior?

- Tá vendo as letras?

- Não vejo nada.

- Mas e a luz?

- Tem um fachinho de luz.

- Tá vendo só! E agora?

- Agora tá tudo escuro.

Senta aqui, tampa seu olho bom. Ele começa a fazer movimentos e quer que eu diga o que são. Eu não sei. Mesmo que soubesse, não diria. Eu não uso o olho que não vê, porque mesmo o que ele vê ele não vê. Ambliopia, disseram. Não tem o que fazer em casos como o meu. O campo visual termina no nariz.

Agora o papel, porque escrevi que minha deficiência visual é deficiência física, mas não é. Física é outra coisa, que precisa adaptar o carro, entendeu?

Mais um tempo aqui e é capaz de eu ser convencida de que nunca tive problema algum. Já amputou? Consegue levantar as mãos? Tem encurtamento? Tá vendo só, eu disse que era rápido. Você não tem deficiência física.

Sinto vontade de dizer alguma coisa, que estou me sentindo agredida, assediada? Não digo. Cheguei ali com medo de não conseguir a carteira, de ter que voltar depois, com lentes novas, grau da hipermetropia que eu sigo renegando. E agora ele diz que está tudo ótimo, a visão monocular não impede nada, 10 anos de carteira, que maravilha, e sem restrição de óculos, quando vier daqui a 10 anos aí você vê se vai precisar.

Carteira de motorista com desenhos de veículos e marcação de categoria B (carro) válida até 2034. Sem observações
Carteira de motorista - Arquivo pessoal

Coloco os óculos de volta, convencida do contrário.

Penso naquele único texto que já escrevi, normal demais para acolher a alcunha de pessoa com deficiência e deficiente demais para me sentir normal. Nunca me senti tão pessoa com deficiência como hoje. Quis gritar que eu não enxergo do lado direito, que sempre levo sustos tentando virar o pescoço mais rápido, que agora dirijo um carro que freia por mim. Não tenho coragem de pegar a estrada, mas queria muito, ainda quero. "Não impede nada".

Sou uma fraude. Um discurso inteiro preparado para defender minha autonomia e a importância de dirigir na minha vida. Nenhum para explicar tamanha vulnerabilidade ao ouvir alguém negar uma parte tão essencial de mim. Essencial, de essência, daquilo que eu não tenho como mudar.

Afinal, eu vejo até alguma luz, se tampar o olho bom.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.