Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente Todas

'Melhor não contar'

Ao tentar escrever sobre o livro de Tatiana Salem Levy, escrevo sobre mim

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Cynthia Araújo

Doutora em Direito, autora de 'A Vida Afinal: Conversas Difíceis Demais para se Ter em Voz Alta'

Eu tinha 10 anos, era meu aniversário, comemorado no mesmo dia das bodas de ouro dos meus avós paternos, em um grande ginásio. Já era fim de festa, apareceu um tio diferente que me colocou no colo e começou a me contar coisas engraçadas. De repente, alguns parentes se aproximaram com olhar preocupado. Não era um tio, era um penetra, você não pode sentar no colo das pessoas assim, o olhar repreensivo.

Em casa, na cozinha de cortina xadrez verde, meu pai deu um tapa no meu rosto e me xingou de nomes que eu ainda não tinha idade para ouvir. Também xingou minha mãe e qualquer responsável por aquele incidente. Todos responsáveis, ele não.

Foi um dos dias mais dolorosos da minha vida e eu sei que cresci com as marcas daquele vermelho suave na bochecha. Ninguém tinha abusado de mim, mas eu recebi a alcunha eterna de culpada, junto de todas as demais meninas que sofreram qualquer tipo de violência. Esse complemento não é nem necessário, apenas culpada, junto de todas as demais meninas - ponto.

Nunca falei sobre isso antes e ainda assim é uma das primeiras cenas que me ocorrem quando passo da metade de "Melhor não contar", o livro que Tatiana Salem Levy fez estar em todo lugar para onde olho.

Talvez a história que Tatiana contou tenha um pouco de todas nós. E por isso, no livro que não é sobre mim, com essa não-resenha que não deveria ser sobre mim, eu me veja em tantas palavras e dores que eu nem sabia que podiam me pertencer, eu com tão menos lutos e abusos que aqueles narrados ali.

A editora (Todavia) diz que é uma obra de ficção e que qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência. Eu me sinto enganada, gosto de saber a verdade, mesmo que a verdade não exista, mesmo que seja só uma pretensão de verdade.

Eu com essa mania de problematizar tudo, estou incomodada, porque no livro são expostos partes dos diários da mãe da autora. Sempre penso que os mortos também têm direitos. Direito a não terem seus escritos distribuídos por aí. Os diários alheios não me parecem essenciais, possivelmente para a escrita sim, mas não para a publicação. Tendo a me lamentar pela imagem aberta à interpretação de quem já não tem mais voz. Ou, na verdade, penso nos meus próprios diários e em como tacaria fogo neles no lugar de entregar a minha filha se imaginasse que ela podia levá-los a público, eu viva ou morta.

Mas e se devassar a vida dos mortos for a única forma de salvar os vivos?

Meu incômodo vai aumentando, não pela própria exposição de quem escreve, essa que acho mais do que corajosa e bonita, acho necessária, um dever que acaba surgindo sobre nós mulheres que precisamos morrer e renascer tantas vezes e que muitas delas só conseguimos fazer pela escrita. Não é algo pelo que se pede, é apenas o que se tem. Mas não importa, porque o que acontece ali é muito maior, tenha ou não redimido a autora. Não pela história de abuso, como tem sido muitas vezes resumida, mas pela manifestação visceral do que pode ser o luto. É um livro sobre a morte da mãe. E ao chegar ao seu fim, sinto que terei justificado cada palavra lida, por mais que ela possa se indispor com a memória dos mortos.

"Com a passagem do tempo – aquele que as vozes me diziam que amenizaria a dor -, posso dizer que o luto acaba?"

O luto não acaba nunca, a vida só vai crescendo em torno dele. É o que mostram desenhos muito compartilhados em perfis sociais sobre o assunto.

No livro que li em poucas horas, querendo despejar as minhas próprias palavras sobre ele, vertendo em lágrimas ou memórias, o luto se misturou com a culpa. A insistência na idade, sempre o número de anos que um homem com quem se relacionava tinha a mais que a narradora. A frase que paira no ar desde a infância, desde os pequenos peitos de fora: só os homens mais velhos podem compreender sua beleza. A culpa. Talvez o luto só possa ser elaborado se for possível dizer "eu te culpo". Para expiar não a sua, mas a culpa da mãe, e assim não basta escrever, é necessário dar a ler, porque não é possível culpar ninguém só para si mesmo.

"No nosso mundo, morrer é uma vergonha. Perder alguém é uma vergonha". Um livro sobre luto. Luto pela perda da mãe. Luto pela doença que prevalece doze anos antes da estimativa que alguém achou por bem elaborar. Luto pela perda das chances que ainda haveria se ninguém tivesse superestimado tanto um prognóstico. Luto pela morte que leva junto a oportunidade de contar.

Algumas coincidências atravessam o meu caminho, mesmo que eu não queira olhar, aquela data na página 163, 18 de fevereiro, um dia antes do meu aniversário, dia 19, 19 anos antes de eu nascer. Não reparei em nenhuma outra, mas reparei nessa. Eu nem sabia que o meu nascimento também conturbado poderia querer dizer alguma coisa, muitas horas de trabalho de parto no calor, meu pai abanando minha mãe com uma folha de jornal, fevereiro de carnaval, vai para a cesárea, o coração dela tá no lugar errado, leva para a incubadora, esse pediatra tá maluco, tira da incubadora. Presa naquele simulador de útero sem precisar, vai ver é por isso que, mesmo tão grudada na minha mãe, eu sempre me senti tão vazia de alguma coisa. Qualquer coisa que todo o resto do mundo parece ter e eu não.

Absorvo as palavras daquele 18 de fevereiro: "Senti o peso de toda uma experiência, senti o peso de uma separação. Vivi como nunca estes meses, e o que aprendi é imensurável".

O rompimento da relação com o homem que até então tinha ficado, aquele que foi sensato e disse que era necessário encontrar o equilíbrio entre não se auto vitimizar e não parecer sedutora, mas foi insensato ante todas as perdas que acompanham um aborto, por mais que seja desejado, destrói minha esperança de final feliz como se destruísse o final feliz de todas as mulheres que já conheci. Sempre de alguma forma anuladas e mortas, enquanto os homens seguem muito homens e muito vivos. Não sei se todo grande amor só é bem grande se for triste, mas a escrita parece ser.

Escreve com cuidado, doce guerreira, é o que querem que façamos. Mas não fazemos, porque não há cuidado que dê conta de tanta dor. "Numa das nossas últimas conversas, ela disse que só encarava aquele horror pela gente. Respondi de imediato que não queria esse peso. Ela se corrigiu, ou se explicou, dizendo que não era um favor que nos fazia, mas que a nossa existência, o amor que ela sentia por nós eram as únicas coisas que ainda lhe davam vontade de viver. No fim, ela não aguentou. Era terrível demais".

Talvez a mãe, sua mãe - sempre as mães - apenas tentasse honrar a promessa feita na infância, mesmo que só um pouco mais. "Não quero que você morra nunca", também diz a minha filha de três anos com uma frequência maior do que deve ser adequado. Sem coragem para responder que "Não vou morrer", tenho dito que todos vamos, mas daqui a muito, muito tempo. Uma mentira não menos grave, porque não posso, ninguém pode, garantir um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, 10, 11, 12 anos a mais em que a vida possa acontecer e as verdades talvez até fossem contadas.

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