Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente câncer Portugal

Gostaria de saber a data da sua morte?

Jovem e escritora portuguesa que morreu por câncer deixa obra póstuma

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"A vida é uma viagem breve. Sinto-me grata por ter conseguido viver estes últimos dois anos a fazer o que me deixava feliz no momento, assim que percebi que a morte chegaria mais cedo do que esperara. Não tenho arrependimentos, não há nada que gostasse de ter feito de maneira diferente. Por isso, se morrer agora, não faz mal".

Dois dos meus bisavôs e uma das minhas bisavós eram portugueses. Não conheci nenhum deles, mas cresci ouvindo sobre a minha ascendência, muitas vezes em tom de deboche. Sempre quis conhecer o Algarve por gostar muito de praias, mas, tirando isso, ir a Portugal não me inspirava grande interesse.

Isso foi mudando aos poucos. Na minha banca de doutorado, um professor da Universidade de Coimbra lembrou que o português é, além do inglês, a única língua falada no mundo inteiro, em todos os continentes. "É legal pensar que seu trabalho pode ser lido em lugares muito diferentes". Como não havia pensado nisso antes?

No último mês, publiquei o livro mais importante que já escrevi: queria dividir com pessoas comuns os resultados das conversas que tive com quase 50 pacientes com câncer avançado, no Brasil e na Alemanha, entre reflexões e pesquisas sobre morte e fim de vida e, acima de tudo, sobre a vida.

O primeiro lançamento aconteceu alguns dias antes de embarcar para as férias com a minha família em Portugal. Resolvi levar alguns exemplares para o país. Vai que eu conhecia alguém que se interessasse?

Para quem escreve, a barreira do idioma é dilacerante. Muitas vezes a gente encontra pessoas com quem divide pensamentos tão semelhantes ou que de alguma forma se interessam pelos nossos textos, mas que não podem ser lidos por elas.

Logo nos primeiros dias em Lisboa, a música que vinha de uma livraria-bar nos chamou a atenção. Eu posso escapar de museus e monumentos históricos com relativa facilidade, mas não consigo deixar passar livrarias e bibliotecas. Fui gestada em uma, onde minha mãe trabalhava, sempre cercada de livros. Costumamos dizer que, já desde a barriga, sou fascinada por eles.

Foto da livraria Menina e Moça em Lisboa mostra prateleiras com livros, um piano ao fundo com objetos diferentes e utensílios de decoração diferente nas paredes e no teto
Livraria em Lisboa em que comprei o livro da Lara Pato - Arquivo pessoal

O espaço e a decoração da livraria-bar nos encantaram. Um piano tornava o ambiente ainda mais acolhedor: piano entre livros, como é a biblioteca que tenho em casa, um dos principais sonhos que já realizei.

Estávamos ouvindo a música que vinha da banda ao lado de fora. O vocalista era brasileiro.

- Você é brasileira, disse para minha filha.

- Não, sou Beatriz, ela prontamente respondeu.

Ainda estava rindo quando comecei a ver o tipo de literatura que ofereciam. Foi quase imediato o sentimento de querer ver meu livro naquele lugar, que já havia garantido boas recordações em tão poucos minutos.

Em uma primeira avaliação, achei que não conseguiria me encaixar na curadoria. Embora uma das primeiras páginas do meu livro traga Fernando Pessoa, o grande expoente naquela livraria, o estilo de literatura parecia distante do que eu tinha para oferecer. Até que meus olhos encontraram "Uma mulher com cancro, um psicólogo e uma virgem entram num Death Café", de Lara Pato.

Na quarta capa, a pergunta que aproxima tanto os nossos escritos: "Gostariam de saber a data da vossa morte? Fazia diferença se tivessem mais um ou mais cinquenta anos de vida?".

Comecei a folhear o livro, esquecida do plano original de falar sobre a vontade de ver meu próprio exposto naquelas prateleiras. Já me imaginava conversando com a escritora, quando vi o final da orelha: "Lara morreu a 27 de maio de 2022. Escreveu até ao último dia da sua vida". O livro, por sua vez, foi lançado há 4 meses.

Alguns dos textos que o compõem já haviam sido publicados antes. Mas há revelações e intimidades que dificilmente alguém teria coragem de dividir com o mundo enquanto ainda estivesse nele. Lara fala de situações constrangedoras, como não conseguir chegar ao banheiro antes de fazer xixi e cocô nas calças. Fala com honestidade sobre a inveja que sentiu de mulheres e das fraudes cometidas profissionalmente. Expõe pessoas de sua convivência, muitas vezes de forma visceral.

Desde que a história da minha mãe se tornou, de certa forma, o fio condutor do meu próprio livro, pergunto-me sobre os limites da escrita. Tenho direito de contar aquilo que não diz respeito apenas a mim? Quanto de literatura sobraria no mundo se as pessoas não pudessem mais falar sobre si mesmas a partir das suas relações? Quem é que tem algo a dizer e escrever quando não pode incluir o outro?

Imagens sobrepostas de Cynthia lendo o livro de Lara Pato em viagem para o Algarve, em Portugal, deitada em uma espreguiçadeira ao por do sol, ao lado da filha Beatriz; e da capa do livro e da mão da Beatriz
Lendo o livro "Uma mulher com cancro, um psicólogo e uma virgem entram num death café", de Lara Pato, no Algarve, ao lado da brasileira (não) Beatriz - Arquivo pessoal

A escrita profundamente honesta da Lara me incomodou em alguns capítulos. Pensei nas pessoas que não poderiam dialogar sobre os sentimentos que ela tinha a seu respeito, já que o livro acaba de ganhar vida, mas ela já está morta. Muito do que a autora escreve não tem propriamente uma função na obra, ao menos não de forma acessível ao leitor e muito menos a partir do que diz o seu título. Mas parece ficar patente uma necessidade de dividir certos sentimentos e pensamentos enquanto ainda há tempo. Enquanto ainda houve tempo.

Quem tem uma doença terminal tem o direito de fazer todos os desabafos que entender pertinentes?

A pergunta que se faz na quarta capa acontece no death café mencionado no título. Para quem abre o livro esperando pelo encontro anunciado, há uma decepção. São apenas 10 páginas já depois da metade, sem que a maior parte dos capítulos anteriores tenham com elas qualquer relação. Pensando bem, mesmo sobre a sua doença e seus lutos, o livro não oferece tanta coisa quanto eu imaginava. Embora, na minha opinião, ofereça o suficiente.

E talvez Lara consiga fazer isso exatamente porque se apresenta em aspectos muitos diferentes e abrangentes da própria vida. Ela fala da infância, da adolescência, da vida adulta, fala da relação com seus pais e sua irmã, dos relacionamentos amorosos e de como enxerga o país onde nasceu, fala de dificuldades gerais da vida - desde reflexões sobre depilação até ser impossível aprender um idioma novo mesmo depois de um mestrado em física.

Lara foi uma pessoa de carne e osso e isso nos aproxima do que ela tem a dizer.

Quem é que quer saber a data da própria morte? Vai que a data está próxima, marcada para amanhã mesmo, em um acidente doméstico banal, que acontece todos os dias a outras pessoas que também não esperavam morrer tão cedo?

Lara quer: "Agora que a expectativa é de que me restem apenas alguns anos de vida, penso que esta é a quantidade de tempo perfeita para saber com antecedência. É tempo suficiente para poder fazer muito do que sempre quis, mas que estava sempre a adiar, e é suficientemente curto para nunca deixar de estar grata por cada fôlego de vida".

O livro demonstra que, em alguns momentos, Lara acreditou ter muito mais anos de vida do que realmente indicavam as probabilidades e do que, afinal, teve. Não surpreende: oncologistas e pacientes com câncer avançado geralmente superestimam a suas chances e creditam a tratamentos muito mais do que eles podem fazer.

Mas a doença se impõe e ela recalcula sua rota, a tempo de repudiar o engano e aproveitar as chances que lhes dão a honestidade e a autonomia:

"Sabem o que seria de grande ajuda? Que me ajudassem a sentir um pouco mais feliz, independentemente do resultado. O destino é imprevisível, mas eu não sou. Posso escolher aceitar com um sorriso o que quer que me aconteça. Se estiver a sangrar e a minutos de morrer, não me mintam ao dizerem: ‘Vai correr tudo bem’. Ajudem-me a apreciar esses últimos momentos da melhor maneira que conseguirem. Perguntem-me o que me faria sentir bem, que música, que sabor, que memória. É o que melhor podem fazer.

Por favor, não me enganem, não me digam: ‘Vai correr tudo bem’".

Mesmo quando aceita a realidade da sua doença e tenta fazer o melhor com ela, chora pelas possibilidades inesperadamente retiradas. "Não quero ter um filho", mas "Choro pelo filho que nunca terei".

Lara dá ao episódio da queda dos seus cabelos, após o início da quimioterapia, o nome "Princípio do fim". Esse era o título original do primeiro capítulo do meu livro. Princípio do fim, o momento em que eu entendia que a morte era também uma realidade para mim, não apenas algo abstrato que acontece às outras pessoas. Mais do que isso, que muitas vezes ela chega subitamente, sem aviso. As coisas estão bem e, de repente, não estão mais.

Às vezes me pergunto se, com as histórias que contamos, pessoas que ainda não vivenciaram as próprias histórias de luto e de dor conseguem recalcular suas rotas também. Se podem passar a viver mais intensamente, projetando a possibilidade da data das suas mortes ou das mortes de suas pessoas amadas para dali a alguns anos, e não algumas décadas. Se, a partir do que eu conto, e não das suas vivências, podem se perdoar mais, realizar mais, antecipar projetos que ficam para depois do natal, depois do crescimento dos filhos, depois da aposentadoria. Depois, depois, depois.

Não sei. Na dúvida, recomendo a leitura do livro dessa jovem não fumante que morreu aos 33 anos, depois de conviver com um diagnóstico de câncer de pulmão - e uma pandemia - por 2. Na medida das nossas possibilidades - e dos nossos privilégios - vale sempre se perguntar: se estiver no fim da vida, há algo que eu tive a chance de fazer e me arrependerei de não ter feito, apenas porque achei que ainda teria tempo e vida para fazer?

Capa do livro "Uma mulher com cancro, um psicólogo e uma virgem entram num death café", com a biblioteca da Cynthia ao fundo
Capa do livro "Uma mulher com cancro, um psicólogo e uma virgem entram num death café" na minha biblioteca - Arquivo pessoal
Imagem da biblioteca da Cynthia, com um tapete no meio, livros ao lado esquerdo em prateleiras sob dois bancos, um piano e uma poltrona ao lado direito
Foto da minha biblioteca - Arquivo pessoal

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