Mural

Os bastidores do jornalismo nas periferias de SP

Descrição de chapéu
Facebook

Jornalismo via WhatsApp: entre o público e o privado

O que a distribuição de notícias ensina sobre o engajamento da audiência e o jornalismo colaborativo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ingrid Fernandes
Agência Mural

A pandemia começou pouco antes de a distribuição pelo WhatsApp ser retomada na Agência Mural. A confusão e instabilidade provocada pela chegada da Covid-19 levou muitos moradores das quebradas a buscarem neste canal informações confiáveis para se orientar.

Todos os dias, chegavam até o telefone relatos de pavor de quem se via obrigado a pegar busão em meio à crescente de casos de contaminações, gente procurando emprego, relatando estar doente ou denunciando uma demissão injusta.

Em nosso chat, chegaram divulgações de vaquinhas, pedidos de doação de alimentos e dezenas de perguntas sobre o vírus.

Uma jovem certa vez quis saber quantos dias os sintomas levavam para aparecer, ela estava com medo porque foi a uma festa e não queria contaminar nenhum familiar. Quando o auxílio emergencial foi aprovado, uma enxurrada de pessoas procurou saber como acessar o benefício. Muitas delas conseguiram, outras não.

Imagem de um desenho amarelo com rosto pensativo e em cima dele o símbolo de um telefone, representando o aplicativo de mensagens WhatsApp
Como o WhatsApp tem sido usado para manter o contato com leitores - Ingrid Fernandes/Agência Mural

A gestão do WhatsApp foi uma de minhas principais funções até o fim do ano passado, antes de assumir o desenvolvimento da área de audiência na Agência Mural. Cuidar dele exigia uma atenção diária em minha rotina, que incluía salvar novos contatos nas listas de transmissão, enviar os conteúdos e responder a cada uma das mensagens.

Cada conteúdo que vai para as listas é escolhido a dedo. Entender como uma notícia poderia dialogar com os dilemas de nosso cotidiano resume um pouco os critérios de curadoria de nossa transmissão no WhatsApp. Esse "dialogar" é muito importante.

Para garantir o engajamento de quem nos acompanha por ali, passamos a disparar mensagens especialmente pensadas para cada "conversa", levando em consideração os parâmetros estéticos e o fluxo da própria rede social.

Abandonamos aquele bloco de mensagem escancaradamente padronizado, o favorito de muitas organizações de jornalismo, para, literalmente, puxar papo com a nossa audiência. Começando pelo "E aí!", as informações em bloco simulam uma conversa que você teria com qualquer pessoa, com um amigo.

Com o tempo, verificou-se o óbvio: quanto mais personalizadas, objetivas e informais são as mensagens, mais interações recebemos. Afinal, quem gosta de conversar com um robô?

Eu não só nunca cumpri esse papel ali, como em uma tarde de abril de 2020, o áudio de uma leitora me fez chorar. Dizia:

"Não sei se vocês vão escutar, mas só queria agradecer as mensagens que vocês mandam desde o começo da pandemia, sempre acompanho. Moro em Santa Catarina, na cidade de Balneário de Piçarras. Aqui eu trabalho como professora e ultimamente tem mexido muito comigo porque eu perdi meu tio pra Covid, e ele mora no Paraná, não consegui me despedir. Na escola tenho amigos que perderam marido, esposa, perderam filhos, alunos que faleceram e a gente tá ali. É bem triste porque quando acontece a morte de pessoas tão próximas parece que um ‘sinto muito’ ou ‘meus pêsames’ fica tão pequeno, parece que nada que tu fale vai ajudar… E não poder dar aquele abraço, sabe? É isso que vocês estão falando na matéria, não poder se despedir como se o ciclo não fosse finalizado. Então, obrigada por essa matéria. Com certeza algum de vocês também já perdeu alguém por covid e eu sinto muito."

Quando ela enviou a mensagem, uma tia que morava na Freguesia do Ó havia falecido há poucas horas. Mais uma vítima da pandemia. Para a ocasião, escolhi disparar pelo WhatsApp uma série de reportagens sobre luto nas periferias, algo que combinava com meu estado de espírito. Contei pra ela depois, que ficou contente por haver alguém do outro lado da tela que ouviu, se emocionou e respondeu seu áudio.

Essa interação com a audiência me levou a testemunhar de um lugar (quase) particular como a pandemia afetou quem vive nas periferias da cidade. Quase, porque, assumindo que a principal tarefa do jornalismo é tornar pública as informações sobre eventos que tanto afetam as pessoas, como transformar em notícia um desabafo particular, feito em uma conversa privada por leitores que viam a Agência Mural como uma espécie de confidente?

Quase como um termômetro, a análise das interações, das perguntas feitas por leitores e leitoras que nos acompanham ali ajudam a redação a farejar o que deve ser noticiado. No final de 2020, por exemplo, quando a campanha de vacinação bateu à porta, a Agência Mural publicou uma reportagem especial sanando dúvidas que haviam nos mandado no privado. Os retornos foram positivos: é legal ser respondido e se ver na notícia.

Uma pergunta feita por áudio, era respondida também dessa forma. Segundo uma pesquisa de 2018 realizada pelo Inaf (Indicador de Analfabetismo Funcional), 86% dos analfabetos funcionais usam WhatsApp. Mais uma razão para apostar em uma diversidade de formatos no mensageiro, como o caso do Em Quarentena, podcast criado pela Agência Mural no primeiro ano da pandemia, que teve sua segunda temporada distribuída integralmente nesse canal.

Marcar presença em meio a um cotidiano isolado é o que, hora ou outra, leva a audiência a sugerir pautas como esta aqui, na qual moradores pedem a reabertura da ala psiquiátrica do Hospital de Ferraz de Vasconcelos. Ou seja, é aí, no elo colaborativo entre a produção e a distribuição, que a natureza da plataforma WhatsApp se mostrou útil ao nosso jornalismo.

Nesse sentido, minha tarefa ia além de gerir e disparar conteúdos. Eu garantia, em nossas reuniões de pauta, que o diálogo entre nossa audiência e os jornalistas da Agência Mural acontecesse.

Recebi fotos de plantas no quintal e convite para comer bolo na hora do café da tarde. Mas ter o telefone da Mural em mãos nos momentos em que o desespero cantou alto durante a pandemia, obrigou-me a encarar nos olhos a vida insustentável que levamos neste mundo marcado pelas desigualdades. Como cantava o mano Sabota, "mundo cão". Nenhuma mensagem ficava sem resposta, mas a real é que não existe resposta para tudo.

Ingrid Fernandes é midiáloga formada pela UNICAMP, responsável pelo desenvolvimento de audiência da Agência Mural e às vezes escreve aqui no Blog

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.