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Música em Letras - Carlos Bozzo Junior
Carlos Bozzo Junior

Iara Rennó mostra a força de 'Oríkì' em show

Álbum celebra a cultura mítica dos orixás

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Acontece neste sábado (27), às 20h, e domingo (28), às 18h, no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, o show de estreia do álbum "Oríkì" da cantora e compositora Iara Rennó.

Um naipe de sopros formado por Allan Abbadia (trombone), Estefane Santos (trompete) e Ana Góes (saxofone), além de Curumin (bateria, voz e MPC), Lucas Martins (baixo), Guilherme Held (guitarra), Alysson Bruno e Loiá Fernandes (percussões), além de Iara Rennó (violão e voz), prometem muito som ao celebrarem os orixás brasileiros por meio de uma sonoridade jazzística e pop ladeada por tambores.

Em foto colorida, a compositora e cantora Iara Rennó posa para a câmera
A compositora e cantora Iara Rennó - Cai Ramalho/Divulgação

Leia, a seguir, a entrevista exclusiva que Iara Rennó concedeu a este repórter sobre o álbum "Oríkì", que contou com 13 anos de pesquisa, criação e produção antes de ser lançado, no dia 27 de maio deste ano, em todas as plataformas digitais.

Entre ser compositora, cantora, instrumentista, produtora musical, performer, atriz e poeta, atualmente o que mais a realiza e por quê?

Podemos tirar o "atriz" da pergunta? Os trabalhos que fiz exclusivamente como atriz foram muito poucos. Acho que está tudo interligado, todas essas atividades fazem parte da minha forma de existir e se alternam conforme a fase a as necessidades do momento. Em 2020, compus cerca de 40 músicas, em confinamento. Essa foi a forma que encontrei de me sentir viva, assim como foi a sincronização de uma música "Chuva", parceria com Thalma de Freitas, gravada pela Gaby Amarantos, que garantiu minha sobrevivência quando não havia outra forma de gerar receita. A produção musical não parou. Lancei um disco em 2020, "AfrodisíacA", e outro em 2021, "Pra Te Abraçar". Em outubro de 2021, lancei na Flip o primeiro corte do filme "Transflorestar - Ato I", minha estreia no audiovisual, um curta onde fiz direção e roteiro, além da atuação e desenho de som. Uma experiência nova para mim e ainda em processo. E agora, em 2022, entrei de cabeça na produção musical de "Oríkì". A volta aos palcos ainda está meio devagar, porque, afinal, a pandemia não acabou.

Favor completar: com 21 anos de carreira já deu para ter uma ideia que ser artista no Brasil é...?

Para os fortes! Artista independente, então, nem se fala… Essa noção precede o início da minha própria carreira. Cresci vendo minha mãe, Alzira E, uma das maiores compositoras brasileiras, exímia cantora e instrumentista, tendo que fazer "de um tudo" para sobreviver nos anos 80 e 90. Ainda mais sendo uma artista, mulher, parda, imigrante em São Paulo, mãe solteira de quatro filhas, o que só reforçava os estigmas do preconceito e as dificuldades que o meio apresentava. Itamar Assumpção, grande parceiro dela e referência para mim, a mesma coisa; sempre na luta pra fazer com que sua música existisse e não fosse invisibilizada. O Brasil até hoje ainda engatinha, tanto nas políticas culturais quanto no mercado cultural. São alguns poucos que estão lutando por nós no Congresso, nas câmaras estaduais, por políticas públicas para cultura. A partir do governo do Lula começou a se pensar sobre isso, mas, hoje, esses que aí estão fazem tudo para sabotar a cultura e a educação, diga-se de passagem. A cultura é uma das maiores riquezas desse país. Como diz Gilberto Gil, precisamos parar de tratar a cultura como se não fosse algo essencial. Das verbas ao espaço que temos nas páginas dos impressos hoje, é tudo extremamente escasso. E não esqueçamos de diferenciar arte de entretenimento. O mercado pop do entretenimento, onde a música é um carro-chefe, funciona porque é onde é injetada a grana. Cultura de massa. Nada contra, só não pode ser uma coisa em detrimento da outra. E, completando a resposta anterior, faltam palcos! Mas artista independente no Brasil não tem como não jogar em todas as posições, não adianta romantizar: a gente passa muito tempo resolvendo burocracia, escrevendo projeto, adaptando, administrando, criando "on demand" etc., para conseguir pagar as contas. Mesmo porque é o mundo do self-service. Você mesmo sobe seus produtos nas plataformas de streaming, de registro de obras etc.

Como você lidou com o trabalho durante a pandemia de Covid-19?

O meu plano era começar a trabalhar nos discos "Oríkì" e "Orí Okàn" no primeiro semestre de 2020, e então veio a pandemia, com todo o pavor e estrago que ela causou na vida social e artística, sem falar no pessoal, claro. A solução que eu encontrei para me sentir viva, e não me sentir tragada e apagada, foi produzir muito. Para mim não era novidade produzir sem dinheiro e estrutura, então encarei mais uma vez essas condições muito longe do ideal e que, depois de certo tempo de estrada, ficam cada vez mais difíceis, verdade seja dita. Acho que essa "magia" tem prazo de validade. Assim foi, por exemplo, a produção de "AfrodisíacA" (2020), um projeto de música, poesia e videoarte, todo feito remotamente a partir de arquivos encontrados nos HDs e colaborações a distância das interpretações de poemas por Elza Soares, Camila Pitanga, Linn da Quebrada, entre outras, a mixagem das tracks e a criação e produção dos vídeos. Quando já estávamos com a corda no pescoço e prestes a fechar e empresa que sustentamos por 12 anos, veio a Lei Aldir Blanc e através dela pude realizar "Pra Te Abraçar", uma série de registros intimistas ao vivo com parceiros diversos, da qual eu tirei um registro fonográfico e joguei no streaming. Esse repertório nasceu quase todo na pandemia, com parcerias a distância. Então, mais uma vez, o curso da vida tinha colocado outros discos na frente do "Oríkì". Mas foi na paciência e na resiliência, no trabalho constante e, sobretudo, com as bênçãos dos orixás que chegou a hora dele e, pela primeira vez, realizado com apoio do Proac SP.

O que aprendeu durante esse período?

Olha, é muito difícil para uma artista como eu ficar sem palco. É prejudicial para a saúde mesmo. Porque é a privação do destino, da missão de comunicar e trocar diretamente com o público. Levar a música "onde o povo está", como canta Milton Nascimento. Se por um lado nos obriga a dar um jeito de continuar, de explorar a criatividade de outras maneiras, por outro pode ser extremamente desgastante esse estado em que vivemos, que é o do artista independente, como disse na resposta anterior, de fazer sopa de pedra, fazer das tripas coração. Sobreviver na escassez. Eu dei meu jeito, mas vi reações diversas. Artistas que travaram. Que adoeceram, que entraram em depressão.

Em foto colorida, a cantora e compositora Iara Rennó aparece em meio a uma mesa com buzios
A cantora e compositora Iara Rennó - Cai Ramalho/Divulgação

"Oríkìs", em iorubá, são frases ou palavras de poder usadas para saudar, evocar ou louvar Orixás. Entre elas, "Èsù gbe eni se ebo lore o", que significa: Exu sustenta quem faz o sacrifício corretamente. Você realizou algum sacrifício para lançar "Oríkìs", qual?

Sem dúvida! Sem Exu nada acontece, não há movimento, não há vida, não tem como se comunicar com os orixás. Sem alimentar Exu, nada tem caminho. De lá para cá, nesses últimos 13 anos, foram bons ebó, bori, oro, até minha feitura de cabeça, dos mais importantes rituais do candomblé. Paralelamente aos processos religiosos, e evocando outro ditado que diz que Exu matou um pássaro ontem com a pedra que só atirou hoje, a música que eu tinha pra Exu, naquela época, continha uma tradução muito equivocada de um verso, portanto, ela teve que ser refeita. Essa nova música só foi composta em 2020, e o disco só ganhou caminho para o mundo depois disso. Para ser lançado justamente no ano em que Exu desfila na Sapucaí e faz da Grande Rio campeã de 2022.

Como você define e posiciona o álbum "Oríkì" na sua discografia? Quantos discos você já lançou?

Essa é uma questão curiosa mesmo, pois "Oríkì" seria meu segundo álbum solo, mas acabou se tornando o oitavo. Minha discografia solo começa com "Macunaíma Ópera Tupi" (selo SESC, 2008), que foi gravado em 2007, sendo que em 2009 gravei a maioria das músicas de "Oríkì", para fazer parte da instalação sonora montada no Museu Afro Brasil neste mesmo ano. Mas muita coisa aconteceu na minha vida pessoal: mudei para o Rio de Janeiro, onde lancei "IARA" (Joia Moderna, 2013). De volta a São Paulo, vieram "Arco e Flecha" (ybmusic/ Selo Circus, 2016), "Iaiá e os Erês" (ybmusic, 2018), meu projeto para crianças de todas as idades. E os pandêmicos "Pra Te Abraçar" (Iara Rennó, 2021) e "AfrodisíacA" (Iara Rennó, 2020), antes de retomar o fio de "Oríkì".

Dedicadas aos orixás mais populares no Brasil e compostas a partir de transcriações de oríkìs milenares da tradição nagô, as músicas do álbum "Oríkì" são envolventes, ricas musicalmente e marcantes, soando muitas vezes como mantras. Você acredita ter sido ouvida pelos orixás, mesmo que na maioria das músicas do álbum o nome da entidade evocada, saudada ou louvada não seja citado? Por que essa omissão? Quem tem mais poder, a música ou a palavra?

Aí é que está: não sei se fui ouvida por eles ou se foram eles que me sopraram essas melodias e versos. Acho que ambos. Muitas vezes me senti como um canal, recebendo mesmo essas músicas, criando de um modo intuitivo, sem pensar previamente se estava no ritmo certo de cara orixá, por exemplo. E certamente fui ouvida por eles, sim. Inclusive cantei, frente a frente com Exu, manifestado, que aprovou e abençoou essas músicas. Afinal, quem cultua orixá sabe do que estou falando a partir de qualquer desses versos, tanto mais os próprios orixás! Este lance de omitir o nome do orixá foi um conceito que eu quis trazer para as músicas para poder, de certa forma, evocar uma sensorialidade a partir das características de cada orixá, pra aguçar os sentidos dos ouvintes em relação a esse universo, procurando ultrapassar conceitos prévios e preconceitos. Cada toque dos tambores tem uma função e evoca um (ou mais) orixás. E, junto com os versos, criam uma atmosfera que pode despertar diferentes sensações e sentimentos nas pessoas, era isso que eu queria causar, sem tanta interferência do pensar. Mas acho que esse conceito acabou se perdendo quando eu lanço o disco, e os nomes das músicas estão repletos de palavras em iorubá, não? E boa essa pergunta final, mas não sei se dá pra medir esses poderes. A palavra é extremamente importante na cultura de Ifá, seja na esfera do sagrado ou no sentido do caráter, mas a música é o principal meio de invocar os deuses e essencial na cultura e religião. E para deixar a questão ainda mais complexa, vale lembrar que o iorubá é uma língua tonal, ou seja, tem uma musicalidade intrínseca. Essa língua, quando falada, é praticamente cantada. Então fica um lance meio quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?

Em foto colorida, a cantora e compositora Iara Rennó posa para a câmera fazendo gesto com as mãos
A cantora e compositora Iara Rennó - Cai Ramalho/Divulgação

"Oríkì" abarca 13 anos de pesquisa, criação e produção. A idealização do projeto surgiu em 2009, quando você criou a instalação sonora "Oríkì in Corpore", no Museu Afro Brasil, para a exposição que contava com 12 obras, cada qual destinada a um orixá, que recebeu uma canção. Você imaginava que esse trabalho levaria todo esse tempo para ser concretizado, sendo que ele ainda não está completo, pois em 2023 ainda será lançado "Ori Okàn", um álbum complementar ao "Oríkì"?

Na verdade, foram as canções que inspiraram a exposição; elas vieram antes. Foi a partir delas que tive a ideia de fazer essa exposição e para conceber e montar as instalações junto comigo, a partir das músicas, chamei a arquiteta e artista visual Silva Olivieri, que já tinha uma pesquisa profunda sobre o candomblé na Bahia. De fato, quando comecei a produzir o disco achei que ele seria lançado na sequência. Mas não temos ingerência sobre o tempo, até porque o tempo é um orixá! Nós não temos o tempo, é ele que, de certa forma, nos contém. Então foi preciso aceitar, respeitar, me curvar ao tempo, às forças que me guiam, muito além das minhas expectativas ou decisões racionais. Foi preciso escutar os orixás! Havia ainda um longo caminho pessoal a ser percorrido, vivido, havia voltas para o mundo dar. De alguma forma sinto que, mesmo sem lançar o disco, ele foi uma semente forte para esse tempo de agora, com tanta gente tocando para os orixás, tantos discos lançados nos últimos 10 anos. Considero "Oríkì" um disco completo em si; "Orí Okàn" é outra coisa. Vem de outro lugar, tem uma outra abordagem poético-musical, mas é também um elo, pois no momento em que eu me recolhi no terreiro as novas músicas começaram a chegar. Mas ao mesmo tempo eu não podia passá-las na frente de "Oríkì". Porque ambos estão no mesmo fio da história, minha história.

Como será "Ori Okàn", o segundo álbum do projeto, e em que ele será diferente de "Oríkì"?

O que posso dizer sobre "Orí Okàn" é que ele difere de "Oríkì" logo de cara pela narrativa das músicas. A narrativa dos oríkì, os poemas de saudação, é mais objetiva, descreve qualidades do ser que se saúda. Por exemplo: "Senhora das nuvens de chumbo/ senhora do mundo/ dentro de mim", música de Gil e Caetano para Iansã, tem um texto que apresenta qualidades, portanto mais próximo de um oríkì. Já "Eu vi mamãe Oxum na cachoeira/ Sentada na beira do rio", que é uma cantiga para Oxum, é um relato mais subjetivo, saca a diferença? No mais, ainda não posso dar detalhes.

Qual o espaço que "Oríkì" e "Orí Okàn" podem ocupar na música popular brasileira?

Me digam, vocês, jornalistas e críticos (risos). Acho que eles compõem o grande tecido dos cantos dedicados aos orixás, ao mesmo tempo que é uma parte importante da minha obra musical, que aprofunda uma vertente que aparece em praticamente todos os meus trabalhos e me compõe enquanto artista. Não estou surfando uma onda: eu joguei uma semente há 13 anos (embora o disco não tenha sido lançado, vale dizer que as músicas fizeram parte da exposição visitada por milhares de pessoas) e de lá para cá essa temática floresceu mais e mais na música pop brasileira e mundial, até. Acho que "Oríkì" tem um potencial grande, porque tem uma essência musical poderosa e única, onde confluem a temática e a minha musicalidade, que venho lapidando há tantos anos, com elementos da música tradicional de terreiro, do jazz, do hip hop, do pop, tudo o que vem da força das raízes africanas.

O que as pessoas devem ter em mente quando escutarem "Oríkì"?

De preferência nada. Eu gostaria que as pessoas escutassem o disco sem preconceitos nem conceitos prévios, como já disse, de cabeça aberta para sentir como essas músicas vibram em cada corpo. Como as frequências e os ritmos te tocam, a que a poesia te remete, para onde te transporta. Se rola um barravento até aonde vai o poder espiritual delas.

Em foto colorida, a cantora e compositora Iara Rennó posa para a câmera
A cantora e compositora Iara Rennó - Cai Ramalho/Divulgação

Comente as participações especiais e contribuições para o álbum "Oríkì" dos artistas Tulipa Ruiz, Carlinhos Brown, Criolo, Anelis Assumpção, Lucas Santtana, Thalma de Freitas, Curumin e Rob Mazurek.

São pessoas e artistas incríveis, algumas com as quais eu tenho uma relação antiga, de admiração, de uma época em que estávamos descobrindo nossa música, nos lançando em nossas carreiras. Então há uma ligação artística e também afetiva entre mim e as pessoas que eu convidei, que de forma geral foram escolhidas também por nutrir alguma relação com o candomblé, em maior ou menor grau, criando essa conexão comigo e com a obra. Por isso, este disco é também um elo energético e espiritual, que nos une na criação, na amizade, nas trajetórias, e a presença de cada um traz força para esse xirê. Todos estes encontros envolvem uma magia própria, seu axé. Alguns eu chamei a partir da energia do orixá que os acompanha, como o caso do Lucas e do Curumin. Anelis [Assumpção] por ser praticamente uma irmã e compartilharmos, desde cedo, o sentir dessa ancestralidade, independentemente de estar cantando para sua orixá. Já o Brown eu conheci pessoalmente bem na época da pré-produção do disco, sendo que sua participação como um "mais velho da religião," além de grande artista, foi para mim uma bênção dupla. Rob Mazurek conheci tocando com o Chicago Underground, de passagem pelo Brasil, e fiquei impressionada com o som que ele tira do cornet. Com Thalma [de Freitas], nossa aproximação também aconteceu na época do início da produção, e como ela se apaixonou pelo projeto e passou a cantar algumas músicas em seus próprios shows, era como se sempre tivesse sido parte. Tulipa estava chegando no pedaço com sua voz única. Mais um que conheci naquele mesmo período foi Criolo. Ele não tinha lançado ainda seu primeiro álbum, foi a um show que fiz com Kiko Dinucci, onde juntávamos músicas para orixá, minhas e dele, e nunca mais esqueceu desse momento. Tanto que alguns anos depois encontrei com ele no Rio e ele me perguntou sério, chamando na chincha: "E aquelas músicas? Você tem que cantar, tem que lançar". Desde o início, achava que "Patakorí O", música que ele canta, precisava de uma pegada rap, melodia mais falada e ficou perfeita com a interpretação dele.

Algumas faixas têm letras do ensaísta Antonio Risério, publicadas no livro "Oriki Orixá" e musicadas por você, enquanto outras foram criadas a partir de pesquisas realizadas sobre os oríkì. Você utiliza alguma metodologia para musicar letras?

Sim, embora não concorde com alguns posicionamentos políticos do autor, esse livro é apaixonante, fonte rica de conhecimento sobre o tema. No mais minhas pesquisas passam muito pelos livros de Sikiru Salamí, babalorixá e sociólogo que vive em São Paulo há muito tempo. Para mim a composição pode acontecer de diferentes maneiras, primeiro a letra, ou primeiro a música, ou musicando uma letra ou letrando uma melodia, depende de quando e com quem estou fazendo a música. É importante ter um estímulo, um ponto de partida, uma faísca. Quando a poesia é musical, vem fácil, mas nem toda poesia é musicável, depende das características que ela apresenta. No geral, meus processos de criação são bem intuitivos, às vezes são bem espirituais mesmo. Muitas vezes eu abro o canal e capto de algum lugar do universo, como uma antena. Nesse caso ainda mais, acho que se tratava disso. Por vezes abria os livros e as melodias começavam a soprar nos meus ouvidos. Naquela época eu não conseguia distinguir exatamente os ritmos de cada orixá, no entanto a maioria das músicas encaixaram nos ritmos de seus respectivos orixás, comprovando a conexão com a intuição, ou com o orixá mesmo.

Entre os músicos que participam do álbum "Oríkì" figuram Kiko Dinucci, Curumin, Maurício Badé, Guilherme Granado, Lucas Martins, Simone Sou, Marcelo Jeneci, Guilherme Held e Simone Julian. O que pesou na escolha desses profissionais e de quem são os arranjos?

Basicamente a combinação entre a excelência musical deles com a proximidade, a história, as afinidades. Se esse álbum tem um quê de histórico na minha trajetória é porque ele de certo modo abrange uma grande parte da minha história, e essas pessoas fazem parte dela. As Simones Sou e Julian, que fizeram parte da banda Dona Zica (meu primeiro projeto musical ao lado de Andréia Dias e Anelis Assumpção), mas, antes disso, estivemos juntas no palco com Itamar Assumpção. Kiko conheci naquela época e pela afinidade com o tema fizemos um show juntos. Curumin conheci bem antes, e passou a ser um parceiro muito importante quando entrou para tocar no lançamento do "Macunaíma", depois produziu o álbum "Flecha", e temos projetos futuros. Badé, que conheci como fã do Mestre Ambrósio e depois se tornou grande amigo e importante figura musical. Gui Held, Lucas Martins e Jeneci, além de músicos, são pessoas de grande sensibilidade. Granado não era exatamente do meu círculo mais próximo, e talvez o mais distante desse campo de ancestralidade, mas um grande músico.

Iara Rennó - Cai Ramalho/Divulgação

Das 13 músicas, sendo 12 inéditas, do álbum "Orikí", comente cinco delas, com seus títulos, nome de seus autores e crédito de quem escreveu o arranjo, descrevendo-as em suas características musicais e poéticas, citando o que a música representa no álbum.

"Àgò Mo Júbà Orí Ọkàn Oríkì", faixa instrumental de abertura é uma composição minha magistralmente interpretada pelo trompetista e cornetista norte-americano Rob Mazurek, que já colaborou com lendas como Pharoah Sanders, Yusef Lateef, entre outros. A música saúda os principais orixás cultuados no Brasil na voz de Ronaldo de Oxalá, Ogã do terreiro de candomblé Ilê Opó Aganju, e tem arranjo de sopros escrito por Marcelo Monteiro.

Com synths e calimbas eletrônicas assinados por Kiko Dinucci, "Laròyé L'Ọ̀nà" foi a única faixa totalmente gravada em 2022. Composta a partir de tradução livre que fiz para o oríkì de Exu, encontrado no livro "Tratado de Orikis", conta com percussão de Maurício Badé e Alysson Bruno e magistral arranjo de sopros escrito por Ed Trombone, gravado por Ed e Daniel Verano.

Em "Pedra de Raio (Káwo Kábiyèsí Ilè)", Carlinhos Brown trouxe sublimes contrapontos em bantu, para saudarmos Xangô. Mais uma música nascida a partir de oríkì transcriado por Risério, a faixa traz percussão de Maurício Badé, bateria de Curumin, baixo de Lucas Martins e clavinet, wurlitzer e juno de Marcelo Jeneci.

Única música feita a partir da tradução da letra de um Orin (uma cantiga iorubá), "Ave Leve (Ore Yèyé O)" foi lançada primeiramente na voz de Virgínia Rodrigues, no álbum "Cada Voz É Uma Mulher" (2019). Em destaque o coro "de sangue", com minha irmã Luz Marina, e os primos Dani Black, Clarice e Lucas Espíndola, acompanhados pelo piano de Marcelo Jeneci e baixo acústico de Márcio Arantes, além da percussão de Badé

Coproduzida por Simone Sou e com arranjo de sopros meu e de Simone Julian, "À Flor D'Água (Odòyá)" conta com kalimbas, percussão e programação eletrônica de Simone Sou, flautas e clarone de Simone Julian, baixo acústico de Alfredo Bello, violão meu e percussão de Maurício Badé e Alysson Bruno.

Depois de quase um mês do lançamento do álbum em todas as plataformas de streaming, qual foi a repercussão? Era o que você esperava?

Olha, nem eu mesma sei o que esperar de repercussão de um trabalho hoje em dia! É tudo muito rápido e efêmero, tudo depende do algoritmo, dos likes… Os parâmetros são de fato muito diferentes dos de 10 anos atrás. É uma parte muito pequena dos artistas da música que fazem disco físico. Tudo é digital. Mas uma vez que se toma consciência disso e se trabalha nesse sentido, acho que a gente consegue alguma inserção - não sem muita luta! Mas o fato é que "Oríkì" está indo bem nos streamings. Com um mês de lançamento já tem quase o mesmo número de plays de Arco - o meu mais escutado até então.

O álbum será lançado em CD?

O disco físico passou a ser um artigo de luxo, e só vale a pena em todos os sentidos se for feito em vinil, um produto de alto custo. Mas não vejo sentido em fabricar CDs. É produção de lixo que o planeta já não comporta. Um ou outro tem onde ouvir e gostar, mas é muito difícil, uma porcentagem muito pequena. Então prefiro juntar uma grana para fazer uma tiragem em vinil.

Na atual conjuntura vivemos um momento de muita intolerância e preconceito. Você não teme ter seu álbum discriminado pelo fato de contemplar o que ele aborda?

Sinto que a discriminação se manifesta de formas diversas. Às vezes está na preguiça expressa em "ah, é mais um disco de música pra orixá". No entanto, ao mesmo tempo que é um disco que me representa musicalmente, acho que é o momento de reforçarmos esse coro: é mais um disco de orixá, sim! Vamos colocar a cultura afro-diaspórica no seu lugar de importância reiteradas vezes, sim! Vai ter posicionamento político, antirracista e antimachista, sim, sempre! Não tem como uma pessoa que nasce no corpo que eu nasci, como Orí que eu nasci, que já passou pelas situações de discriminação que eu passei, não se posicionar nesse sentido. São lutas que vêm desde quando eu nem sabia do que se tratava, mas mesmo assim meu corpo reagia. Nós, enquanto povos de terreiro, ficamos entre a proteção do orixá e a intolerância religiosa racista que ficou ainda mais descarada e violenta durante esses últimos anos, visivelmente um reflexo da postura fascista de governantes. E se esses são fatores que aos olhos de alguns diminuem minha arte, acho que é preconceito, sim. Mas não é isso que vai me parar!

Em foto colorida, aparece a capa vermelha com escritos em amarelo e símbolos do candomblé
Capa do álbum 'Oríkì' - Divulgação

SHOW DE ESTREIA DO ÁLBUM ‘ORÍKÌ’

ARTISTA Iara Rennó

QUANDO Sábado (27), às 20h e domingo, às 18h

ONDE Sesc 24 de Maio, r. 24 de Maio, 109, República, São Paulo, tel. (11) 3350-6300

QUANTO De R$ 20 a R$ 40

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