Nem sempre boas histórias são garantia de boas personagens. E o contrário também é verdade. Ótimas personagens não necessariamente criam narrativas inesquecíveis. Aliás, é possível até encontrar livros para lá de interessantes sem personagem nenhuma —veja um exemplo radical aqui.
Mas é inegável que uma coisa geralmente está ligada à outra. E isso costuma ser ainda mais forte na literatura infantojuvenil, com muitos protagonistas que roubam a cena, marcam gerações e acompanham a vida do leitor durante décadas, talvez para sempre.
Vemos isso de "Reinações de Narizinho" a "Harry Potter", de "O Meu Pé de Laranja Lima" a "Píppi Meialonga". Mas também em uma leva recente de lançamentos para crianças e jovens que apresentam personagens marcantes, divertidas, poéticas, profundas, com pitadas de nonsense ou tudo isso junto.
Conheça abaixo esses dez livros —e, principalmente, esse grupo.
Van Dog
Não, você não leu errado. Este livro dos poloneses Gosia Herba e Mikolaj Pa traz o tal Van Dog, um cachorro que é pintor —acho que não é preciso explicar a brincadeira entre Van Dog, o cachorro, e Van Gogh, o pintor, né? Na história, o cão artista sai ao ar livre para pintar a paisagem. Mas, ao contrário do horizonte pacato e do ambiente bucólico, o cenário se torna uma completa zona. Enquanto ele tenta se concentrar, surgem extraterrestres, monstros gigantescos, insetos que sonham com o espaço, vampiros que querem sorvete, aranhas tagarelas e todos os tipos de maluquice. Adivinha como vai ficar o quadro pintado por Van Dog?
Octávio
Octávio, o protagonista deste livro, é um cacto que trabalha como analista e resolve problemas espinhudos trazidos por seus clientes, desde cactinhos apaixonados até suculentas que não sabem nadar. Enquanto as ilustrações de Luciano Tasso amplificam o humor e o nonsense, com consultórios improváveis, plantas punks e porta-retratos de Sigmund Freud, o texto de Maria Amália Camargo alça a linguagem ao posto de personagem principal. Pelas páginas, saltam aliterações, repetições e recursos que dão ritmo à história e ao seu protagonista. E não tinha como ser diferente, afinal "Octávio é um cacto pacato. Quase sempre intrépido –ou seria impávido? E nunca relapso."
Os Pães de Ouro da Velhinha
Aqui não há uma boa personagem, mas duas. De um lado, está a velhinha, que vive numa "casinhola para lá de esquisita" e acha que a morte se esqueceu dela. Do outro, surge a própria Morte, que um dia resolve levar a idosa embora e bate à porta do casebre com uma forma corporal estranha, que flerta com o fantástico, mas sem ser assustadora nem escorregar para a fofura. Quando a Morte chega, porém, a mulher está cozinhando os seus famosos pães de Natal, cuja receita só é conhecida por ela. Então é posto o dilema nessa narrativa italiana traduzida por Maria Amália Camargo, a mesma autora de "Octávio" —será que a Morte vai abrir uma exceção e esperar a velhinha?
Meu Dia de Sorte
Este best-seller global da japonesa Keiko Kasza segue o mesmo mote da personagem que tenta enganar a morte. Mas faz isso de outra forma, com uma raposa faminta e um porquinho malandro. Ao mesmo tempo ecoando e invertendo a lógica do clássico "Os Três Porquinhos", o suíno do conto decide ir de livre e espontânea vontade até a casa do predador, onde usa toda a sua esperteza contra o carnívoro. Lá, com muita lábia e malemolência, ele vai enrolando e ludibriando a raposa, que nunca consegue jantar o leitão, a ponto de o leitor começar a duvidar sobre quem está tendo um dia de sorte.
O Anjo da Guarda do Vovô
Este clássico, que havia sido publicado pela Cosac Naify e estava fora de catálogo no Brasil, volta às livrarias agora pela Companhia das Letrinhas. Nele, quem conta a história é o avô do título, que passa a sua vida a limpo e narra os vários momentos em que foi salvo por seu anjo da guarda. Como é natural nos bons livros ilustrados, as imagens não se limitam a enfeitar as palavras, mas ampliam as possibilidades de leitura, mexem com a linha do tempo e fazem referências à Segunda Guerra, ao nazismo e ao Holocausto. Não à toa, este é um dos principais títulos de Jutta Bauer, que venceu em 2010 o Hans Christian Andersen, considerado o prêmio Nobel da literatura infantojuvenil.
Mergulho
Arthur é incrível porque tem um oceano inteiro dentro dele. Um dia, quando a personagem faz xixi na cama, a família decide levar o garoto ao médico. É então que descobrimos o seu coração de radar de submarino, mergulhamos em suas profundezas e encontramos peixes-palhaços, tubarões, sereias e constelações no céu da boca. O texto de Volnei Canônica apresenta imagens poéticas e potentes que se desdobram nas ilustrações subaquáticas de Mariana Massarani. As alegorias e o predomínio da cor azul ganham ainda mais profundidade quando sabemos que o protagonista é inspirado em um Arthur de verdade, sobrinho de Canônica que é autista.
Grão de Arroz
Não é todo dia que vemos um autor brasileiro escolher o nome Betânia para batizar uma personagem. Porque esse nome não é só um nome, mas quase uma evocação. Não à toa a personagem de Sonia Braga em "Aquarius" recomenda que o sobrinho toque Maria Bethânia para a namorada, numa das cenas do filme que mais ficaram famosas. "Mostra que tu é intenso", diz ela. E é isso o que faz Aline Abreu em "Grão de Arroz", um livro em que a intensidade brota do texto e das imagens. Nele, Betânia é limitada e maltratada pela avó, com quem vai morar a contragosto após um problema com a mãe. Num equilíbrio entre o lirismo e a crueza, a história encontra seu desenlace em algo poderoso: a literatura.
Cabo de Guerra
Ilan Brenman e Guilherme Karsten já têm uma coleção de protagonistas nos livros que fizeram juntos. Agora, na nova parceria "Cabo de Guerra", dezenas de novas personagens se unem a essa lista. Tudo começa com uma linguiça perdida. Depois, surgem dois cachorros, que mordem as pontas opostas do embutido. Essa é a deixa para o tal cabo de guerra, que só vai ficando mais e mais complexo a cada virar de página, quando sempre aparecem novas figuras para ajudar a puxar. O que parece uma brincadeira logo ganha complexidade ao colocar em lados adversários cristãos e judeus, Peter Pan e Capitão Gancho, Porquinhos e Lobo, Pelé e Maradona, num eco literário da polarização em que estamos todos mergulhados. Tudo isso sem dizer uma única palavra, já que a obra é composta somente de imagens.
Você Não Vai Acreditar no que Eu Vi
São tantos e tantos monstros na literatura infantojuvenil que é sempre um risco contar uma nova história com criaturas fantásticas. O que mais pode ser dito depois de "Onde Vivem os Monstros" e "O Grúfalo", por exemplo? Fran Matsumoto encara o desafio e homenageia esses clássicos em seu novo livro ilustrado. Primeiro, conhecemos o menino protagonista, que aparentemente está sendo amedrontado pelo irmão mais velho com um lero-lero sobre uma criatura horrenda escondida na casa onde vivem. Contar o final estragaria a surpresa do livro, mas o desfecho faz uma clara piscadela a "Monstros S.A.", da Pixar.
Daniel e as Bactérias
A história de uma infecção, cheia de nomes técnicos como Staphylococcus aureus, linfócitos e micrófagos, só poderia resultar em um livro chato, certo? O professor Flavio Alterthum e o premiado ilustrador Fernando Vilela mostram que não é bem assim. Os dois assinam "Daniel e as Bactérias", no qual o menino do título e a bactéria Cocus protagonizam uma infecção que se transforma em literatura, já que o avanço desses seres microscópicos é narrado como se fosse uma guerra épica nas entranhas do corpo humano —aliás, Vilela é autor do clássico "Lampião e Lancelote" e já está acostumado a criar visualmente batalhas e outras aventuras do tipo.
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