Na Corrida

Pé na estrada, mesmo quando não há estrada

Na Corrida - Rodrigo Flores
Rodrigo Flores
Descrição de chapéu atletismo machismo

Ser mulher e corredora é um ato de coragem

Mulheres escolhem ser donas dos direitos, do corpo e do tempo, apesar de tantos "nãos"

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Danúbia Paraizo

O texto de hoje não é do Rodrigo Flores. A convite dele, vim compartilhar experiências pessoais e coletivas sobre como é ser mulher e corredora. Pois bem, muito prazer. Danúbia Paraizo.

Adianto que não queria ser eu a trazer algumas verdades incômodas, mas acredito que compartilhar essas reflexões é também uma maneira de reconhecer a resiliência de muitas mulheres. Comigo, essa jornada começou há quase 10 anos, em uma corrida organizada por uma grande rede de fast food.

Era uma prova só para mulheres, e mesmo muito acima do peso, me sentindo inadequada por não ter um corpo atlético, resolvi experimentar essa história de correr. Fui a convite de uma amiga querida, a Camila, que sempre me inspirou a fugir das obviedades. Ela tinha razão. Voltei para casa com a certeza de que, a partir dali, independentemente dos padrões estéticos, estaria sempre em movimento. Só não fazia ideia de tudo que passaria para seguir correndo.


Kathrine Switzer é hostilizada durante maratona de Boston de 1967. Switzer tornou-se a primeira mulher a participar oficialmente da prova.
Kathrine Switzer é hostilizada durante maratona de Boston de 1967. Switzer tornou-se a primeira mulher a participar oficialmente da prova. - Boston Globe via Getty Images

Antes mesmo do fiu-fiu cotidiano nas ruas, a relação pouco amigável da corrida com as mulheres não é de agora. Assim como o voto, divórcio ou cartão de crédito, a corrida, principalmente, maratonas, também foi conquistada à base de resistência. Kathrine Switzer que o diga. Em 1967, a então universitária de apenas 20 anos precisou abreviar seu nome para se passar por homem na inscrição para a maratona de Boston (EUA). Apesar do horror de ser empurrada e xingada pelo diretor da prova, Kath entrou para a história como a primeira mulher a correr "oficialmente" em Boston.

Os motivos para a proibição da participação dela ou de qualquer outra mulher em maratonas nos anos 1960 refletiam o machismo que se estende até hoje. Na época, acreditava-se que as mulheres não eram capazes de correr longas distâncias. Passados mais de 50 anos, crianças ainda aprendem que ser lento é correr como mulherzinha.

Como reflexo de uma série de amarras, falta de incentivo e representatividade, quanto mais longa a corrida, mais masculino é o público. Há pouquíssimas mulheres correndo maratonas. As que conseguem ser mais rápidas, independentemente da distância, também precisam se desculpar por ferir a masculinidade frágil de alguns. Eu já passei por isso. Estou longe de ter tempos excepcionais, mas tenho muito orgulho das minhas conquistas, especialmente dos cinco pódios que já subi. E em todas essas ocasiões, TODAS MESMO, tive que lidar com algum corredor com orgulho ferido. Homens, por favor. Se poupem. Nos poupem. Acolham, reconheçam, apoiem as mulheres.

Estamos cansadas de ter que programar cada treino, passando mentalmente o trajeto, o horário, a roupa, absolutamente tudo para evitar riscos, olhares e assédios travestidos de "elogios". "Vadia" e "mal comida" são alguns dos abusos que tenho colecionado. E seguirei ouvindo porque escolhi não me calar – nem parar de correr.

Correr tranquila é um privilégio que desconheço. Não há um dia sequer que eu saia de casa sem sentir medo. Aliás, tenho, sim, dias de paz. Aos fins de semana, quando corro com o meu marido. Aí fica evidente a covardia cotidiana. Quem não tem um pai, irmão, marido ou amigo, faz o quê? Não treina?

Durante muitos anos morei no Capão Redondo, bairro periférico da zona Sul de São Paulo. Sem opções de parque por perto para conseguir treinar, eu fazia os treinos longos saindo de casa rumo ao estádio do Morumbi. Era uma corrida sempre muito solitária, raríssimo cruzar com outra mulher. Sem falar do terreno acidentado. Era preciso correr, literalmente, na rua porque a qualidade das calçadas era desastrosa.

Chamo atenção para esse ponto porque nas periferias praticamente não há locais adequados para qualquer tipo de exercício físico. Combinado com outros desafios como a violência, dinheiro ou tempo para pegar um ônibus e ir até um parque, as mulheres, especialmente, as mães solo, estão fadadas a não saírem de casa.

Ser corredora é um ato de coragem, mas muitas de nós estamos cansadas de tanta coragem. De persistência, de resistência, não apenas física, mas política e social. Todos os dias, eu, – nós – mulheres, escolhemos ser donas dos nossos direitos, do nosso corpo, do nosso tempo, da nossa história, apesar de tantos "nãos". Coragem é essencial, mas queremos mesmo é mais acolhimento.

DANÚBIA PARAIZO é jornalista e maratonista.

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