Não Tem Cabimento

Joana e Ana Carolina, sob pseudônimos, falam sobre anorexia, bulimia e outros transtornos alimentares e de imagem

Não Tem Cabimento - Joana e Ana Carolina
Joana e Ana Carolina
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Um transtorno alimentar reconhece o outro

Depois de entender o problema, quase sempre nos encontramos na multidão

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Às vezes sinto que temos um letreiro neon sobre a cabeça. Pessoas com transtornos alimentares quase sempre se reconhecem só de olhar. Eu, ao menos, fui me tornando craque em estranhar pequenas porções de comida, evitação de determinados alimentos e o desconforto ao toque amigável e banal.

Basta observar alguns alguns dos hábitos disfuncionais para captar quando alguém está comendo pouco porque odeia seu corpo ou quando simplesmente entrou em uma dieta e vai, se tudo der certo, pelo bem de sua saúde mental, desistir em uma semana. Se alguém esconde seu braço ou evita ser tocado também pode haver um motivo como o auto-ódio que o transtorno traz consigo. De fora pode não fazer sentido, mas se perceber viva pode ser dolorido.

pessoa deitada sobre mesa de madeira; sobre seu rosto há o um espelho redondo
cottonbro studio/Pexels

É claro que eu não sei todos os comportamentos que os transtornos podem causar, mas alguns como esses me chamam a atenção mesmo em meio a uma multidão porque se parecem com os meus.

Assim como outros alguéns, eu não suporto que encostem no meu braço. Me lembro da primeira vez que pensei sobre isso: eu tinha uns oito anos. A minha prima contou que sua amiga, uma mulher gorda, não permitia que seu namorado encostasse em seus braços. Me lembro de achar absurdo que aquela pessoa não permitisse o toque de alguém querido. Hoje entendo, mesmo sendo uma pessoa magra.

Minha distorção de imagem me nutriu com incontáveis ideias sobre meu valor, às quais demorei para começar a decifrar e, mais ainda, contestar.

Mesmo estando nos moldes do que é bem visto pela nossa sociedade, descobri ser mais seguro esquecer minha existência, ainda que para isso seja necessário me esquivar da ternura de alguém que amo ou dar um aperto de mão com o cotovelo grudado ao corpo. Não me movo, logo, não existo. Ainda bem.

O mesmo acontece se alguém me olha muito ou me fala sobre mim. É que apesar das dezenas de anos eu ainda tento entender onde fica cada coisa entre os meus pensamentos e o meu corpo.

Na minha cabeça de criança (que sou), se o meu pai foi embora pelo fundo da casa para não falar comigo aquela vez quando minha tia me levou para vê-lo durante as férias, é porque pousar os olhos sobre mim é repulsivo. Então fica melhor assim: ninguém repara em mim e eu esqueço que existo. Afinal, ser uma criança repulsiva é chato e faz um mal danado para a infância. E para a vida adulta também, vejam onde estamos.

Fui me convencendo de que silêncio poderia ser o meu melhor amigo, já que não me diz nada —se sou ruim, boa, feia, bonita, vazia ou cheia demais a ponto de exaurir todo mundo. Tanto faz e ainda bem, ele me afasta de mim.

Mas como vir existindo assim, fugindo de mim é cansativo e, hoje sei, o contrário do que deveria, abri o ano com um desafio: de manhã, depois do café, entre o pijama e a roupa que me leva ao trabalho, espio esse corpo no espelho. Às vezes com a luz apagada para não ver muito; sempre de longe para enxergar tudo. "Oi, corpo, como é que vamos?". E mais um dia tentando dar uma forma para um emaranhado de pensamentos e ideias.

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