Não Tem Cabimento

Joana e Ana Carolina, sob pseudônimos, falam sobre anorexia, bulimia e outros transtornos alimentares e de imagem

Não Tem Cabimento - Joana e Ana Carolina
Joana e Ana Carolina
Descrição de chapéu saúde mental ansiedade

Chamar a depressão e a bulimia por seus nomes mudou minha vida

Ter depressão é comum, mas não normal; começar a entender porque me sentia tão mal foi imprescindível para me sentir um pouco menos maluca

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Quando você percebe que os transtornos alimentares existem e são sempre um tabu (ninguém sabe, ninguém viu, e especialmente, ninguém liga), os sintomas dos outros ficam mais evidentes. Se você passar muito mal e perder uns quilos por falta de saúde, a maior preocupação dos falsos preocupados, na verdade, é saber qual foi a receita para o "sucesso". O que poderia ser mais valioso do que perder peso?

Descobri que minha depressão se chamava assim relativamente cedo, mas levei um tempo para aceitar ajuda. Me lembro de perguntar à minha psicóloga se não era normal sermos depressivos: "pensei que fosse inerente ao ser humano", disse, à época. Precisei que ela me explicasse a diferença entre o que é normal e comum porque até então o dicionário não tinha dado conta de me fazer entender.

Hoje não me lembro tão bem dessa pessoa que fui, o que é quase sempre um alívio, mas também um autoengano. Se eu não me lembro, será que inventei? Em partes, para me sentir melhor foi preciso encontrar os nomes das coisas que me acometiam. Foi preciso ver uma pessoa muito magra no espelho e só depois entender que era meu aquele reflexo para começar a assimilar o que é a distorção de imagem. Sim, eu não sabia que aquele reflexo era eu. Reconheci sua magreza por tê-lo visto de relance. E perceber que eu não tinha clareza daquela imagem me deixou confusa por algum tempo.

Foi essa confusão que me fez entender ser incapaz de decodificar minha imagem quando associada ao meu rosto. Por muitos anos, na parede do meu quarto, esteva um recorte em tamanho real do meu corpo. Era um lembrete sobre as suas delimitações. Foi meu medidor da realidade por incontáveis dias. Sem meu rosto no topo, era mais fácil perceber o corpo ao qual me refiro até hoje. Provavelmente uma das estratégias mais eficazes no meu processo de autopercepção até aqui.

Mulher magra se olha num espelho e vê sua imagem como de uma mulher gorda
Sou agora uma pessoa que ainda não se enxerga exatamente como é, mas tem mais dimensões de tamanhos e possibilidades do que tinha em 2010 - Catarina Pignato

De lá para cá, conforme fui melhorando, também precisei esquecer um pouco aquela pessoa para poder ser a que sou agora. Me olhar no espelho de vez em quando (até tentar me olhar diariamente, como venho fazendo). Sou uma pessoa que ainda não se enxerga como é, mas tem mais noção de tamanhos e possibilidades do que tinha antigamente.

Agora eu sei, por exemplo, que nos momentos em que menos assimilo as dimensões do meu corpo, são aqueles em que estou mais insegura ou vulnerável. Problemas familiares, em relacionamentos e no trabalho são, muitas vezes, gatilhos de inseguranças que distorcem minha imagem.

Eu só sei isso porque a terapia chegou para me contar. Não significa que seja fácil resolver: eu continuo sofrendo. Imagine não ter noção de quem você é, quase nunca ser capaz de reconhecer seus contornos no espelho, ou de escolher uma roupa, simplesmente por não saber se é do seu tamanho, nem mesmo olhando. É confuso porque nesse caso o que os olhos veem o coração sente —e sente muito.

Mas é mais possível em 2024 do que foi em 2010. Se sinto algum desconforto, percebo a vontade instantânea de me esconder, uma dificuldade imensa de estar com as pessoas, pensamentos tristes e o impulso de mudar minha imagem como se minha vida dependesse disso. Hoje em dia consigo me lembrar que o corpo que me carrega por aí não é o problema.

Consigo procurar na minha cabecinha se uma briga familiar ou um projeto que deu errado poderiam, quem sabe, ter me feito duvidar da minha capacidade, abalado minha autoestima e autoimagem. Geralmente encontro a resposta. E faço tudo ao contrário do que pede minha cabeça: se a vontade for comer apenas alface em cada refeição e correr 5 km, cinco vezes por semana, durante um mês, farei refeições balanceadas e no máximo, um alongamento.

Por mais que tenha descoberto no exercício físico um aliado contra a ansiedade, eu agora consigo ver que ele pode ser um truque que estou tentando dar. E para cima de mim mesma, não mais. Acabou. E quando eu olhar no espelho, dentro de alguns dias, e entender os contornos da imagem que vejo, aí, quem sabe, não seja possível ensaiar mais do que um alongamento na sala de casa? Sem riscos de fazer as coisas que (parecem) certas por motivos errados.

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