Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Espanhóis, esses doces (mais ou menos) amargos

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Foi uma amiga italiana aqui em Barcelona que catalisou minha recente obsessão por sabores amargos.

Como a maioria dos seres rocinantes deste hummungulus-planeta, não nasci amante da amargura.

Diz a ciência que é uma proteção evolutiva. Pra não sair se envenenando com alguma planta tóxica, por exemplo.

Mas, também, é verdade que ninguém acorda depois de uma ressaca, uma separação ou um dia duro de trabalho y vai na padaria pedir uma escarola. A gente qué doce doce doce vida de me-mel.

Por outro lado, se cê gosta de amargo e não gosta de quem não gosta de amargo, amargo é tu. A vida é amarga ou a vida é doce, cê escolhe. Susana, quanta amargura. Enfim, quanto bullying vocabular com O Amargor, amaro, amarelo, triste, bilioso. O amargo tem má fama, coitado.

(bilioso: "inclinado à cólera, mau gênio" - como figura no Google e em compêndios médico-psiquiátricos-alquímicos dasantiga)

***

Daí que eu estava conversando com a tal amiga italiana outro dia, e ela meio que me inspirou uma epifania sobre o tema.

Simona vem de um pueblo do Vêneto, mesma origem de parte da minha família. É uma cozinheira das bôua. A seguinte conversa se desenvolveu em espanhol, porque tanto ela quanto eu só falamos português e italiano do duolingo:

— Porra (essa sou eu, que falo "porra" em qualquer língua). Então quer dizer que a endívia roxa e radicchio não são a mesma coisa?

— Não. Radicchio é muito mais amargo que endívia. Y me encAÁnta (com veemencia italiana). Nós, italianos, adoramos o sabor amargo. Temos bitters, Campari, Fernet, Amaretto, muitos tipos de radicchio. Mas os espanhóis, não. Por isso aqui não tem nada amargo. Nem chicória tem, repara.

Fiquei pensarosa. Por coincidências cósmicas, no dia seguinte tava eu conversando com a italiana da banca de orgânicos na feira do lado de casa. E ela confirmou: desiste de encontrar radicchio, chicória ou qualquer verdura amarga por aqui; não é do gosto local.

Pé de radicchio vermelho sobre superfície lisa
Radicchio da variedade Chioggia - Reprodução

Depois, descobri mil fabulosas coisinhas.

Em resumo, que radicchio é da família da chicória, da alcachofra, da endívia e da escarola. Que tem de mil tipos, com denominação de origem, e que eu possivelmente tava confundindo a variedade precoce di Treviso (um tanto comum no Brazel) com a endívia roxa. Bem que eu estranhava ser a endívia tão menos amarga do que eu recordava.

Em Barcelona, com sorte é possível encontrar radicchio e outras verduras amargas mais especiais em mercados especializados como La Salumeria, em Poblenou, ou o famoso mercado da Boquería.

De resto, nos grandes supermercados espanhóis, o máximo de amargor verdural costuma vir de uma bolsa de rúcula ou de escarola – as quais, por sinal, possuem sabor menos picante e amargo que as que me recordo ter comido no Brasil.

E das endívias, pelas quais sou absolutamente loucamente irremediavelmente apaixonada, com seu suave gosto amargo-doce e textura cheia de crocância.

***

Bom, não é justo dizer que os espanhóis não curtem uma amargura suave. Especialmente na hora d̶e̶ ̶e̶m̶b̶o̶r̶r̶a̶c̶h̶a̶r̶s̶e̶ do vermú ou vermut, que é como costumam chamar o happy hour do meio-dia.

A bebida estrela da hora do vermut é, dã, o vermute, basicamente um vinho macerado com ervas.

As fórmulas mais populares são, adivinha, de origem italiana (vide marcas como Martini e Cinzano), mas desde o século 19 a Espanha ganhou estrelinhas no panteão dos vermutes, com marcas como a catalã Yzaguirre e mil outras grandes, pequenas e artesanais em todo o país. Em 2021, inclusive, o vermute basco Astobiza ganhou o "Oscar" internacional dos vermutes na categoria semi-doce.

Entre as dezenas de ingredientes alquímicos, sementes como as de cardamomo (da família do gengibre) e ervas como a losna (também usada tradicionalmente pra fazer absinto) conferem o sabor amargo e aromático característico à bebida.

Em resumo, o vermute é tipo uma catuaba espanhola, doce-amarga paka, como a vida. Um peri-iiigo.

Na Espanha, o sabor amargo figura também discretamente em bebidas não alcoólicas como o bitter kas, um troço gasoso vermelho-neon que se popularizou nos anos 1960 na Espanha e hoje em dia é considerado bebida de vó (de fato, eu lembro de chegar aqui anos atrás e observar com interessância as señoras nos terraços de bares tomando umas poções fosforescentes).

Aliás, a bebida era tão popular que até hoje algumas pessoas mayores (aka mais experientes :)) chamam refrescos em geral de "kas".

De resto, menção honrosa pra universal cerveja e pro gim-tônica, uma onipresença em festinhas profundas de xovens e mayores aqui e alhures. Taninos, quininos. Entre os gins espanhóis, meu absoluto favorito (não que eu tenha provado muitos, mas esse foi paixão ao primeiro porre) é o galego Nordés, com seus toques florais e frutais.

(mais sobre a história do vermú em outra colunita!)

****

Voltando à endívia: cês sabiam que é na realidade uma raiz de chicória cultivada no escuro? Por isso é tão branquinha. E por isso também foi importante como alimento durante as guerras aqui na Europa, quando muita gente tinha que fazer a vida em abrigos antiaéreos.

Não por acaso, o sabor amargo se associa a curandeirismos vários desde tempos imemoriais. É bom pro fígado, pra digestão, é bom como depurativo e tônico revigorante (whatever this means) em geral.

Toda cultura tem seus bitters em forma de licores digestivos, xaropes, cataplasmas, chás. Vide o chá de carqueja da minha mãe, que era a coisa mais horrorosa e bendita do mundo. Ou o bitter (nome genérico para poções concentradas com cousas naturais curtidas no álcool) sueco; ou o bitter da Maria Treben, que, dizem, ressuscitou a receita alquímica do Paracelso.

Minha fissura do momento é preparar bitters caseiros para usos múltiplos. Sou fã de angostura, boto até na água com gás. Já tô reunindo sementinhas de cardamomo, frutinhas de zimbro, raiz de genciana, grãos de cacau e café, patas de morcego, rabo de lagartixa de Cuenca. Quem tiver dicas, receitas e causos por aí, favor compartilhar :).

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