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Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Lorca, o poeta sem corpo

Aniversário da morte do poeta e dramaturgo espanhol nos recorda que ainda faltam muitas vítimas do franquismo a desenterrar

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Nas primeiras horas do dia 18 de agosto de 1936, a luz fraca da manhã gerava sombras disformes no barranco da estrada que conecta Víznar e Alcafar, dois vilarejos nos arredores de Granada, na Andaluzia, Espanha.

As enormes covas comuns já esperavam abertas. Algumas haviam sido cavadas pelos próprios condenados horas antes.

Quem caminhava em direção à morte talvez tropeçasse nas raízes de árvores antigas, retinas dilatando-se de escuridão e terror. Nessa derradeira procissão, alguém talvez agarrasse com força um potinho de remédio, um dedal de costureira, um terço --objetos de fato encontrados posteriormente em escavações arqueológicas.

Entre os fuzilados pelas tropas franquistas essa noite estava o poeta granadino Federico García Lorca, então com 38 anos.

Há 86 anos, nessa madrugada longínqua de verão espanhol, Lorca desapareceu, e assim fantasmagórico permanece: paradeiro desconhecido. Como as outras 300 a 400 pessoas que, estima-se, foram mortas e enterradas no mesmo local.

Lorca, membro da chamada geração de 27 e nome maior da literatura espanhola do século 20, foi uma das primeiras vítimas do franquismo, apenas um mês após o golpe de 1936 que lançaria o país num longo período bélico-ditatorial.

Teria sido enterrado nesse barranco ermo, empilhado com outros corpos em um buraco na terra? Ou transferido a outro local? Teria sido coberto com cal para que os ossos não pudessem ser facilmente identificados, como costumavam fazer os assassinos?

Lorca, Lorca, Lorca. Celebridade aqui, seu corpo vem sendo buscado já há alguns anos. "Se vai me perguntar pelo Lorca, não continuamos esta entrevista", disse Francisco Carrión, arqueólogo forense responsável pela escavação arqueológica na região, ao El Diário.

Compreensível: Lorca é importante, mas, como resume outro membro da equipe forense, Rafael Bracero, "nosso trabalho é exumar as centenas de pessoas que seguem aí enterradas".

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A cada ano, o aniversário da morte de García Lorca evoca, na Espanha, mais do que a qualidade poética-revolucionária-emocional de obras como Bodas de Sangue e Romancero Gitano.

Retrato em preto e branco do poeta espanhol Federico García Lorca, morto pelas tropas franquistas em 1936. Imagem em preto e branco mostra retrato de um homem jovem que olha diretamente para a câmera.
Federico García Lorca (1898 - 1936), poeta e dramaturgo espanhol - Reprodução

Seu assassinato é símbolo de um doloroso período histórico que, para muitíssimos espanhóis, ainda não foi apropriadamente encerrado; um lembrete de que centenas de milhares de vítimas da ditadura franquista, especialmente entre 1936, ano de eclosão da Guerra Civil Espanhola, e 1953, permanecem desaparecidas.

Os familiares, agora na terceira ou quarta geração, buscam, querem, demandam justiça histórica e pessoal. A batalha é política, cara, intensa, complexa.

O atual governo socialista do premiê Pedro Sánchez recém-aprovou em julho de 2022 uma nova Lei de Memória Democrática que atualiza e aprofunda a Lei de Memória História de 2007 e estabelece como "política de estado" a busca e exumação de desaparecidos do franquismo e da Guerra Civil.

Essa lei foi contundentemente rejeitada pela oposição, concentrada no Partido Popular (PP), sob a alegação de que não contempla as vítimas de "terrorismo" e que é "revisionista". Outras entidades civis reconhecem o avanço gerado pela nova lei em termos simbólicos, mas pedem medidas mais concretas.

Detalhe extremamente expressivo dessa "pelea" (disputa): durante o governo anterior do premiê Mariano Rajoy, do PP, entre 2011 e 2018, o estado dedicou zero zeee-rohh 000 euros para a causa da busca e exumação de vítimas do período ditatorial.

Por conta disso, nesse meio-tempo houve gente que chegou a recorrer a campanhas de crowdfunding para exumar parentes. O processo é caro: envolve testes de DNA, investigação histórica e buscas exaustivas que podem dar em nada.

No orçamento geral de 2022, o governo destinou 12 milhões de euros para a exumação de até 800 corpos.

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"TODOS ERAM LORCA"

O informe da delegacia de polícia de Granada de 1965 registra que Lorca era "socialista, maçom e homossexual". Ou seja.

Nem a interferência de seu amigo, o badalado compositor Manuel De Falla Matheu, pôde salvá-lo.

Em 2002, o barranco de Víznar, hoje coberto por uma floresta de pinheiros plantada pelos falangistas para encobrir seus horrores, virou Lugar de Memória Histórica e ganhou um monumento-lápide reverencial com os dizeres: TODOS ERAM LORCA.

A cada dia 19 de agosto, uma velada poética acontece no local. Começa à meia-noite e se estende até o amanhecer. É importante lembrar.

A Espanha, segundo declaração recente do premiê Pedro Sánchez, é o segundo país do mundo com mais desaparecidos "forçados" depois do Camboja.

Até hoje, estima-se que mais de 150 mil vítimas do período ditatorial, entre republicanos (a maioria) e franquistas, permanecem enterradas em solo espanhol. Há presumivelmente mais de 4 mil fossas comuns em todo o país. Somente 8% disso teriam sido, até hoje, completamente exumadas.

O Ministério da Justiça criou um mapa de fossas interativo, por onde se podem buscar vítimas e status de investigação. Os dados acima são dessa plataforma.

Os números, porém, não são unânimes. Segundo a Associação Espanhola de Antropologia e Odontologia Forense, entre 2000 e 2019 teriam sido exumadas 785 fossas, mais do que o dobro das estatísticas oficiais. Ainda assim, é pouco.

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A Espanha em conflito por essa questão histórica fica patente na recepção morna de "Madres Paralelas", de Pedro Almodóvar (2021).

O filme, resultado de um desejo y pesquisa de duas décadas, tem como pano de fundo histórico exatamente o tema acima, com a protagonista (Janis, interpretada pela favorita almodovariana Penélope Cruz) batalhando por desempacar uma escavação em seu pueblo de origem a fim de buscar o corpo de seu bisavô, assassinado pelo franquismo.

Na época do lançamento, o desempenho doméstico relativamente fraco nas bilheterias levou o cineasta manchego a declarar, em entrevista ao El País: "Pressentia uma frieza em relação ao filme por parte de metade do país, e atribuo o fato ao tema de que trato: a memória histórica".

"A Espanha sempre foi um país dividido", disse, "e segue sendo".

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